Primeiranistas de
graduação em Filosofia às vezes "refutam o perspectivismo" com o
seguinte joguete lógico que remete a uma contradição:
"Não há fatos -
somente interpretações. Isto é um fato."
Ou, na notação da
lógica proposicional,
P^~P
P, logo não-P.
Isto é: a afirmação de
que não há fatos, mas só interpretações, conduz a uma contradição e, por
conseguinte, não pode ser verdadeira.
A refutação parece
persuasiva, não?
* * *
O diabo é que as
palavras não são planas. Há profundidades hermenêuticas variáveis em cada uma
delas.
No caso que expus
acima, a primeira palavra "fato" corresponde ao plano ôntico,
enquanto a segunda corresponde ao plano ontológico. Uma coisa são os
"fatos" ("não há fatos") que lemos em um jornal, que
sabemos numa conversa, que usamos para tomar decisões na vida. Outra coisa, bem
diferente, é uma afirmação metafísica universal a respeito do funcionamento da
estrutura da realidade ("isto é um fato"). São dois níveis
hermenêuticos do termo "fato"; a rigor, trata-se de dois conceitos
diferentes sob o mesmo vocábulo.
Quando entendemos que a
natureza da linguagem é polidimensional, e que as palavras são, via de regra,
polissêmicas, imediatamente desaparece o nó da contradição que tanto efeito
causa entre os estudantes de Filosofia.
* * *
Digo isto porque estava
refletindo a repeito de um fenômeno que me causa tristeza. Tenho visto
diariamente a deselegância, a grosseria, a estupidez de ambos os lados da nossa
política polarizada: pessoas adultas e inteligentes se comportando como
adolescentes assistindo a um jogo de futebol.
Amigos, será que
ninguém percebe que as paixões políticas são movidas pela linguagem, e que os
propagandistas políticos têm, há mais de cem anos, utilizado a inevitável
polissemia das palavras para, da forma mais eficaz, tocar corações e direcionar
afetos?
Será que ninguém nota
que as palavras de ordem e os slogans políticos são produzidos justamente para
causar um efeito aprisionante na disposição dos sujeitos, transformando-os em
massa?
E que a incorporação
plana ao discurso de palavras que jamais são planas reduz a profundidade do
próprio intelecto?
*Prof. Dr. Gustavo
Bertoche
Filósofo. Educador.
Escritor. Musicista. Filósofo Clínico.
Teresópolis/RJ
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