Uma pessoa do senso
comum e até especialista em alguma área, como a de humanas e terapêuticas, pode
pensar no papel do filósofo clínico de modo bem controverso. Em primeiro lugar
por não conseguir compreender a junção de duas palavras opostas em seu sentido
usual, uma vez que filosofia conota algo teórico, abstrato, enquanto clínico
remete à prática, à cura do corpo e do psíquico.
Poderíamos responder a
essas questões demonstrando-as seu equívoco, apresentando o sentido correto do
termo ao que corresponde. Isso seria fácil, pois filosofia clínica, em suma,
aborda o referencial teórico inspirado na tradição filosófica e a clínica a
essa aplicabilidade da riqueza filosófica no auxílio existencial das pessoas
que procuram o profissional da filosofia clínica.
Por outro lado,
fazermos um percurso entre três grandes referenciais da filosofia clínica no
país pode nos esclarecer alguns pontos e enriquecer nossa proposta de reflexão.
Por isso, vamos nos remeter ao Will Goya, de Goiás, à Monica Aiub, de São
Paulo, e ao Hélio Strassburger do Rio Grande do Sul.
Segundo Will Goya, o
cuidar na clínica filosófica é o exercício do amar. Amar é uma prática
direcionada ao outro não como o semelhante, mas como o diferente. Na sua
especificidade, o encontro com o outro forma um nós, a partir do qual o
filósofo clínico exerce seu cuidado. Em última instância, a experiência de ir
ao outro possibilita um reconhecimento das profundidades próprias. Segundo o
próprio autor, em suma: “na clínica, amar é essencialmente cuidar dos outros”
(GOYA, 2010, p. 17). O que aponta para o núcleo conceitual que define sua visão
da clínica filosófica.
Para Monica Aiub, a
filosofia clínica é um exercício que intenta viabilizar a autonomia do
pensamento. Nesse processo deve-se atentar para algumas questões. Primeiramente
não deve haver qualquer possibilidade de tornar o partilhante alguém dependente
a longo prazo de seu terapeuta. Outro aspecto a ser visado é o choque que pode
haver entre filósofo clínico e partilhante. Caso o partilhante o afronte de
modo a atrapalhar o processo terapêutico, ela sugere que indique outro
profissional para dar prosseguimento ao atendimento. Sob hipótese alguma
deve-se sugerir movimentos existenciais ao partilhante que sejam pessoais e não
do próprio, nem mantê-lo dependente dos préstimos do filósofo. O exercício da
clínica filosófica deve “Ajudá-lo a acomodar, a transformar, a modificar, a
aceitar, a transmutar, a conviver... ao que for a sua escolha, diante de suas
necessidades e possibilidades” (AIUB, 2005, p. 120). Em suma, poderíamos ver na
perspectiva de Aiub a defesa da filosofia clínica como a que conduz o
partilhante à autonomia.
Hélio Strassburger, por
sua vez, postula o exercício da clínica filosófica como realizado “em contextos
de imprecisão e descoberta” (STRASSBURGER, 2012, p. 119). Nesse sentido a
filosofia clínica foge aos escopos das tradicionais abordagens do cuidado. Além
do “espaço privilegiado” à manifestação do ser do próprio partilhante, há o
reconhecimento de que o filósofo clínico não é isento do processo de
interseção, o que ao contrário do que se poderia pensar, constitui-se numa
riqueza. Nesse processo, no qual o partilhante narra sua trajetória, o filósofo
segue vislumbrando sua Estrutura de Pensamento encontrando na riqueza subjetiva
do outro os “remédios” e “venenos” para seguidamente viabilizar a continuidade
do exercício cuidador (STRASSBURGER, 2012, p. 120).
Seja denominando cuidar
como exercício de amor, como possibilitar a autonomia ou como adentrar no
processo “sem fórmulas” de descoberta da subjetividade, o que os autores
mostram é a entrega daquele que assume o papel existencial do filósofo clínico
e, suspendendo a capa de suas concepções prévias ou julgamentos pessoais, lança-se
ao mundo alheio em vista de viabilizar sua existência.
Desse modo, a filosofia
clínica não é algo puramente teórico, nem um exercício de curas físicas. Ela
pode abranger ambos, ou seja, desde a necessidade de trabalhar no âmbito
abstrato até as somaticidades do partilhante. Entretanto, jamais construirá um
arcabouço teórico filosófico prévio para exercer a clínica. Também, não
trabalhará com cura no sentido de sanar o que considera doença, pois normal e
patológico não são conceitos que compactuam com a singularidade subjetiva do
partilhante em clínica. Cura pode se remeter ao conceito latino, cura-ae, que
traduzimos para o português como cuidado.
Quanto à questão da
herança da tradição filosófica, a filosofia clínica supera a filosofia
tradicional. Mas, não é uma superação com sentido de juízo de valor. Superar
aqui significa mudança de direção, de sentido, no que diz respeito à finalidade
da abordagem que nos referimos. Enquanto poderíamos conceber a filosofia como
busca de compreensão e explicação de âmbitos universais, a filosofia clínica
trata do indivíduo, no sentido mais profundo da palavra, em sua singularidade.
* Prof. Dr. Miguel
Angelo Caruzo
Filósofo. Escritor.
Filósofo Clínico
Teresópolis/RJ
Bibliografia:
AIUB, Monica. Filosofia
Clínica: o que é isto? In: CADERNOS. Centro Universitário S. Camilo, São
Paulo, v. 11, n. 1, p. 113-121, jan./mar. 2005.
GOYA, Will. A escuta
e o silêncio: lições do diálogo na filosofia clínica. 2ª edição. Goiânia:
Ed. da PUC Goiás, 2010.
STRASSBURGER, Hélio. Pérolas
imperfeitas: apontamentos sobre as lógicas do improvável. Porto
Alegre: Sulina, 2012.
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