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A violência interpretativa*

No texto intitulado “Hegel e a dialética antiga”, escrita em 1961, Hans-Georg Gadamer trata da relação entre a dialética hegeliana e a dialética desenvolvida e praticada pelos primeiros filósofos, especialmente Platão. Até então, havia lido sobre violência como um modo de fazer o texto dizer mais do que ele talvez até tenha dito, quando se tratava da interpretação efetuada por Martin Heidegger. Afinal, em sua proposta de “destruição”, o autor de “Ser e tempo” buscava o dito no não dito, a condição de possibilidade do que havia sido expresso, a experiência originária daquilo sobre o qual se expressou o pensamento. No caso de Hegel, a violência interpretativa não havia sido tão diferente. Gadamer, como estudioso da filosofia antiga, comparou o que os primeiros pensadores escreveram e o que Hegel disse sobre esses escritos. As imprecisões são expostas. Mas, Gadamer lê Hegel como parte de um caminho rumo à “consumação” da metafísica. Nesse sentido, o autor de “Verdade e

Fragmentos Filosóficos, Literários, e algo mais*

"(...) Evitar tais tentações é o primeiro dever do poeta, concluía, pois, como o ouvido é a antecâmara da alma, a poesia pode arruinar e destruir com mais segurança do que a luxuria ou a pólvora. O ofício do poeta (...) é portanto o mais alto de todos. Suas palavras alcançam o que para os outros é inatingível. Uma simples canção de Shakespeare tem feito mais pelos pobres e pelos malvados que todos os pregadores e filantropos do mundo (...)"  "(...) Orgulhava-se de que sempre o tivessem chamado de literato, e escarnecessem de seu amor aos livros e à solidão (...) Quebrara, certa vez, o leque de Lady Winchilsea, procurando uma rima. Relembrando avidamente esses e outros exemplos de sua incapacidade para a vida social, sentiu-se possuído pela inefável esperança de que toda a turbulência da sua juventude, sua rusticidade, seus rubores, seus longos passeios e seu amor ao campo fossem a prova de que pertencia, mais do que à raça nobre, à raça sagrada - que fosse, de n

Reflexões de Um Filósofo Clínico*

Pode parecer pouca coisa diante da enormidade do que estamos vivendo. E é mesmo. Mas fui verificar, por curiosidade, como o meu livro sobre a pandemia ficava no Kindle.E descobri que os "revisores" da Amazon mudaram o meu texto sem a minha autorização. Para contextualizar: quando enviamos um livro para publicação na plataforma da Amazon, o livro passa por uma "revisão" (olham se o ISBN informado no original bate com que informamos no cadastro da obra, se há páginas em branco, se há imagens truncadas et cetera). Ocorre que logo nas primeiras páginas eu informo o seguinte: "O texto deste livro NÃO SEGUE o novo acordo ortográfico."Assim mesmo, com o "NÃO SEGUE" em letras maiúsculas. Não é que os revisores do texto decidiram simplesmente apagar esse "NÃO SEGUE"? Eles estabeleceram, sem qualquer pergunta ou aviso ao autor, que o certo é: "O texto deste livro segue o novo acordo ortográfico". Assim fi

Fragmentos Filosóficos, Literários, e algo mais*

"Estou sentado, lendo um poeta. Há muitas pessoas na sala, mas não as sentimos. Estão nos seus livros. Movem-se por vezes nas páginas, como alguém dormindo se vira entre dois sonhos. Ah, como é bom estar entre pessoas que lêem (...)"  "Estou aprendendo a ver. Não sei o que provoca isso, tudo penetra mais fundo em mim, e não pára no lugar em que costumava terminar antes. Tenho um interior que ignorava (...)" "Por exemplo, eu jamais notara que há tantos rostos. Uma porção de gente, muito mais rostos do que pessoas, pois cada uma possui vários. Há pessoas que usam um rosto anos a fio; naturalmente, ele se desgasta (...)" "(...) por causa de um verso é preciso ver muitas cidades, pessoas e coisas, é preciso conhecer bichos, é preciso sentir como voam os pássaros, e saber com que gestos flores diminutas se abrem ao amanhecer. É preciso poder recordar caminhos em regiões desconhecidas, encontros inesperados, e despedidas que há muito sentía

Espelho da Vida*

“Aquilo que chamamos de fato pode muito bem ser um véu tecido pela linguagem para ocultar da mente a realidade.”                                                                         George Steiner Ver o sol refletido na água é poder ver tudo o que há no abismo entre as linguagens, a melhor forma de não perder a tradição da fala e o poder da leitura após observarmos que o céu não tem dono, apenas espectadores. Existem os que frequentam a vida, assim como os que vivem a vida intensamente. Os dois tipos são apenas espectadores da cosmológica definição poética existencial sobre a vida. A prova é estar vivo. De repente os conceitos, como um jogo de cartas, passam de mão em mão, olhos em olhos, pensamentos, sentidos, tudo no mesmo tempo. A sincronia é atonal, o som não é único, o estar vivo é o movimento do não verbal com os sentidos e a mente. O sintomático está diante da certeza de que o fim é um céu infinito, também podemos pensar que o fim esbarra logo ali, na primei

Fragmentos Filosóficos, Antropológicos, e algo mais*

"Para o chamado homem 'primitivo', não existe distância entre a coisa e a palavra que a exprime, não há distância entre o sopro, princípio vital, e o Verbo que forma este sopro" "(...) a linguagem é conhecida, em sua expressão através do homem, como uma realidade material, e atirar uma palavra é um ato tão transformador quanto lançar uma flecha ou uma pedra" "Os seres vivos se transformam porque a tanto os obrigam o meio que os cerca e as condições de vida. A adaptação é a causa determinante" "Talvez venhamos a encontrar, algum dia, uma escrita disfarçada, depositada em objetos, em pedra no solo ou então - quem sabe ? - dentro de nós mesmos, nas sutis profundidades de nossas células" "O fundamento de várias práticas mágicas é a crença de que as palavras são dotadas de uma realidade concreta e atuante, bastando tão somente pronunciá-las para que sua ação se exerça. É nisto que se baseiam várias orações ou fórmulas

A Palavra Diante de Si***

"Sonhar é acordar-se para dentro"               Mário Quintana A palavra diante de si, ao ser a mesma, já é outra. Seu discurso, ofuscado pela proximidade, atesta irreconhecíveis intimidades. Os movimentos dos quais é refém parecem desdobrar vestígios de imensidão. É comum não se perceber diante de um espelho embaçado.  Na trama dos termos agendados, a contradição entre elogio e crítica reflete aquilo que os dicionários tentam definir. Sua anterioridade se move em novas direções. A imaginação, mesmo aprisionada pelo vocabulário conhecido, deixa rastros de algo mais.  Por essas franjas inconclusas um teor discursivo, ao desviar convicções, emancipa raridades. Nesse momento de possível tradução, aprecia o refúgio em poéticas de não ser. Uma incerteza pluralizada desveste o texto novo, permite-se surgir nas fissuras do próprio fundamento. Os vestígios dessa invisibilidade qualificam a história da palavra. Esse deslocamento, ao visitar antigos endereços existenciais

Fragmentos Filosóficos, Literários, e algo mais*

(...) descobrimos que a linguagem é o homem e que somos feitos de palavras, pronunciadas e não pronunciadas, umas banais e outras atrozes" "(...) O poema nos faz recordar o que esquecemos: o que somos realmente" (..) o sentido não só é o fundamento da linguagem como também de toda apreensão da realidade. Nossa experiência da pluralidade e da ambiguidade do real parece que se redime no sentido" "Para a tradição oriental a verdade é uma experiência pessoal. Portanto, em sentido estrito, é incomunicável" "(...) Muitos séculos antes que Hegel descobrisse a equivalência final entre o nada absoluto e o pleno ser, os Upanishad tinham definido os estados de vazio como instantes de comunhão com o ser (...)" "Pensar é respirar porque pensamento e vida não são universos separados e sim vasos comunicantes" "(...) a expressão América Latina: é uma, ou várias, ou nenhuma ? Talvez seja apenas um rótulo que mais do que

Divagações sobre a interpretação filosófica*

Se você pretende compreender o que Heidegger pensou sobre Heráclito, leia Heidegger. Mas, se quiser saber o que os estudiosos de Heráclito dizem sobre o pensamento dele, leia os estudiosos. Por fim, se quiser saber o que Heráclito disse, leia o próprio Heráclito. Como saberemos quem foi mais fiel ao filósofo estudado? Aquele que encontrou o dito no não dito, isto é, nas entrelinhas, nos subentendidos ou na condição de possibilidade do que pode ser dito? Ou aquele que disse algo sobre o texto que podemos comparar no próprio texto? O comentador mais fiel será sempre o comentador. Alguém que busca a fidelidade a partir de interpretações mais compatíveis e comprováveis pelo texto investigado. O passo de um pesquisador que comenta uma obra é tornar claro o que o texto aparenta manter obscuro. Isso é deixar claro o obscuro ou acréscimo de conteúdo? No caso de filósofos que, em última análise, tornam-se menos fieis aos textos que comentam, interpretam e criticam, buscar a comp

Fragmentos Filosóficos, Devaneios, e algo mais*

"Havia muito tempo que a pintura linear pura me enlouquecia, até que encontrei Van Gogh que pintava, não linha ou formas, mas coisas da natureza inerte como se estivessem em plena convulsão" "(...) em todo psiquiatra vivo há um repugnante e sórdido atavismo que lhe faz ver em cada artista, em todo gênio, diante dele, um inimigo" "Van Gogh era uma dessas naturezas de lucidez superior que lhes permite, em todas as circunstâncias, enxergar mais longe infinita e perigosamente mais longe do que o real imediato e aparente dos fatos" "(...) Em face desta unânime sujeira, que tem de um lado o sexo e de outro, aliás, a missa, ou certos ritos psíquicos como base ou ponto de apoio, não existe delírio algum em prender doze velas acesas sobre o chapéu para pintar uma paisagem à noite" "A medicina nasceu do mal, se é que não nasceu da doença, e se não a provocou e criou, peça por peça, para se atribuir uma razão de existir; mas a psiq

As dores e suas réguas*

As recepções de hospitais costumam exibir um cartaz que informa o nível de prioridade no atendimento aos pacientes. É uma espécie de tabela de risco, com cinco níveis, desde ‘emergência’ até ‘pouco urgente’.   O atendimento imediato, por exemplo, contempla pacientes com parada cardiorrespiratória, em estado de choque ou com perfurações e hemorragia. O nível mais brando de risco (não urgente) contempla pacientes com dor leve, escoriações e pode levar horas e horas até um enfermeiro ou médico se ocupar do problema… Já complicações de saúde como crise de asma, dor de cabeça intensa, taquicardia e dor abdominal correspondem aos níveis intermediários: muito urgente, pouco urgente e urgente. Já pensou se as dores e desconfortos emocionais também pudessem ser medidos com uma régua tão objetiva? Dor de amor: emergência. Dor de saudade: muito urgente. Dor de decepção: urgente. Dor de tédio: pouco urgente. Dor de reprovação: pouco urgente. Outro sujeito poderia apresentar tabela diversa.

Fragmentos Filosóficos, Literários, e algo mais*

"O poeta é aquele que ouve uma linguagem sem entendimento" "(...) Essa fala é essencialmente errante, estando sempre fora de si mesma. Ela designa o de fora infinitamente distendido que substitui a intimidade da fala. Assemelha-se ao eco, quando o eco não diz apenas em voz alta o que é primeiramente murmurado mas confunde-se com a imensidade sussurrante (...)" "Escrever jamais consiste em aperfeiçoar a linguagem corrente, em torná-la mais pura. Escrever somente começa quando escrever é abordar aquele ponto em que nada se revela, em que, no seio da dissimulação, falar ainda não é mais do que a sombra da fala, linguagem que ainda não é mais do que a sua imagem, linguagem imaginária e linguagem do imaginário, aquela que ninguém fala, murmúrio do incessante e do interminável a que é preciso impor silêncio, se se quiser, enfim, que se faça ouvir" "(...) o poeta é aquele que ouviu essa fala, que se fez dela o intérprete, o mediador, que lhe

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