A palavra mais
utilizada da língua portuguesa deve ser o "porque".
O ser humano precisa de
uma explicação lógica para quase tudo, e o “porque” é a ferramenta predileta
para esclarecimentos, seja perguntando ou respondendo. Se a resposta iniciar com um belo “porque”,
metade do trabalho já está pronto, nem precisa esclarecer direito. Existindo um “porque”, por mais absurdo e sem
sentido que seja, a coerência parece refeita. O “porque”, por si só, tem o poder intrínseco de acalmar o
interlocutor.
Por que o voo está
atrasado? Porque o avião precisou fazer uma revisão nas turbinas. A atendente
do balcão responde e o passageiro se satisfaz com a explicação, que justifica o
atraso, mas não resolve o problema.
Segundo Nietzsche, precisa existir um “porque” e então a gente aguenta
qualquer “como”.
O problema é que quase nunca existe um único
“porquê” ou um “porquê” definitivo para determinada situação. Geralmente
respondemos com o “porque” mais instantâneo
ou desenvolvemos uma explicação
conforme a vontade do freguês.
Por que você fez isto?
Nem sempre a pessoa que fez sabe. Simplesmente deu vontade, foi lá e fez. Pode
ter feito por impulso, raiva, vingança, maldade, ingenuidade. Na hora de
responder, avaliará a melhor opção, aquela que satisfaz sua consciência e
possivelmente sossega a ansiedade do outro, e iniciará seu discurso com um
solene “porque”. Se a explicação não for suficiente, imediatamente surgirá um
novo “por que” exigindo um “contra porque” de réplica. E assim sucessivamente
os “porquês” se multiplicam.
Você sabe exatamente
porque ama ou deixou de amar alguém? Por que se apaixonou ou desapaixonou? Por
que comprou aquela bolsa caríssima? Por que torce pelo Flamengo e não para o
Botafogo? Você não sabe. Garanto. Imagina que sabe, racionaliza, produz um “porque”
razoável, anestesia a consciência e segue a vida.
Nem todo o saber segue
a lógica e a razão. Saber deriva do latim “sapere”, que tem o duplo sentido de
saber e sabor. O recém-nascido começa a explorar o mundo pelo sabor, sugando o
seio materno de olhos fechados. Para o bebê não existem palavras, não existem
imagens, o mundo é um objeto de deleite. Um mínimo de saber e o máximo de sabor
possível.
Mais adiante, passa a
conhecer o mundo com os olhos e quer entendê-lo através das palavras. Surgem
então os famigerados “porquês” e começam a desaparecer os sabores. Os pais não aguentam tantas interrogações e
nem conseguem respondê-las adequadamente. Um “por que” vai arrastando outro e o
saber que agora vale é aquele que pode ser descrito com palavras. O mundo
começa a perder sabor.
A criança come um
mingau de banana, mas faltam-lhe palavras para dizer o gosto da banana. Começa
a confusão. Sabores não se definem com palavras, são segredos incomunicáveis
através da linguagem. Tente descrever o sabor de uma banana. Um “porquê” jamais
vai transmitir um sabor. Segundo Rubem Alves, para saber o sabor de algo, é
preciso ir além das palavras, chegar ao lugar onde o prazer acontece.
Talvez aqui esteja o
porquê do fracasso dos “porquês”. Experiências verdadeiras não são tagarelas,
faltam-lhes palavras apropriadas. Tudo aquilo que conseguimos expressar com
palavras é porque já fomos além. Nietzsche já dizia que a linguagem foi
inventada apenas para transmitir aquilo que é médio, comunicável. Nossos
sentidos trespassam palavras.
Certa vez, me
interessei por uma garota. Ela passeava todos os dias na mesma praça onde eu
corria. Sua beleza e a maneira graciosa como tratava seu cão me atraíram. Um dia tomei coragem e educadamente a
abordei, comentando que talvez ela nem tivesse percebido, mas havíamos nos
cruzado várias vezes nas últimas semanas e não pude deixar de reparar a
delicadeza de seu andar com o cãozinho. Se não fosse incômodo, gostaria de
acompanhá-la na caminhada para trocarmos algumas palavras e nos conhecermos.
Ela não se intimidou
com minha aproximação, prontamente pediu-me um beijo e disse que depois
decidiria se iríamos conversar. Fiquei atordoado com a proposta, não fazia
sentido algum beijar uma desconhecida, mas não me fiz de rogado, afinal não é
todo dia que se recebe um convite assim. Não trocamos um selinho ou uma
beijoca. Foi um beijo com bê maiúsculo.
Deliciado e surpreso,
ela sussurrou em meu ouvido que antes de me conhecer, precisava saber se minhas
palavras tinham sabor, para depois então resolver se teria vontade de me
ouvir. Ficamos nos conhecendo, sentindo,
apreciando, gostando e admirando por meses, até que um dia surgiram os
“porquês” obstaculizando nossa conexão e tirando o amor de nossa comunicação.
Por fim, os “porquês” nos afastaram.
Priorizar o “porquê” é
deixar a sensibilidade de lado para dar lugar à ilusão do saber das palavras.
Palavras seduzem, aparentam conhecimento, disfarçam a ignorância, mas não
conseguem traduzir um sabor, um prazer, um viver. O pulo do gato é descobrir
que o saber autêntico provém do sabor e não da linguagem. Sábio e aquele que
usa a boca para saborear muito e falar pouco. Adquire um paladar mais refinado
com discernimento para escolher aquilo que vai comer, escutar ou falar.
Um “porque” encantador
cativa a mente inquieta, mas não alimenta, sequer engana a alma. A serpente é
considerada o símbolo da sabedoria não porque convenceu Adão e Eva ao pecado
através de palavras, mas porque os seduziu a provarem um sabor desconhecido, o
gosto da sabedoria.
Por que temos a pretensão
de saber o porquê de tudo? “Porquês” geralmente são imprecisos, não fidedignos
e podem conduzir equívocos. Talvez a verdade esteja no não dito, no vivenciado,
sentido, experimentado, e a resposta mais honesta que podemos fornecer a um
“por que” interrogativo, seja um breve porque sim, porque não ou não sei
porquê. Mas isto não explica, deixa um vazio, parece desinteresse, provocação,
arrogância.
Anos mais tarde, por
acaso, nos encontramos numa livraria. Ela tomava um café e lia Carpinejar.
Contou-me que morou em Montevidéu, estudou filosofia e gastronomia. Trabalhou
como chef num restaurante mexicano e seu cãozinho teve dois filhotes, Pablo e
Neruda. Mostrou-me uma tatuagem no tórax, quase abaixo dos seios que dizia
“Deixa-me calar-te com um beijo que te faça a alma gritar”. Não foram precisos mais de cinco minutos de
conversa para que as palavras falassem menos que os olhares.
A noite chegou, a
livraria fechou e o sabor voltou. Enquanto o coração não souber o que sente, a
cabeça não sabe o que quer. O sabor é o alimento do saber. A vida não exige explicação, mas suplica por
degustação. Delicie-se.
*Ildo Meyer
Médico. Escritor.
Palestrante. Mágico. Filósofo Clínico.
Porto Alegre/RS
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