Pular para o conteúdo principal

Postagens

Isolamento social, ideologia e privilégio de classe*

A linguagem é dialética. Para apreender toda a extensão do que é dito, é preciso captar não só o seu significado explícito, mas também o que se oculta. Todos sabemos: em período de pandemia, é preciso ficar em casa, cumprindo com o máximo de rigor a clausura, para que possamos nos proteger mutuamente. Esse é o aspecto evidente da frase das campanhas do tipo "fica em casa!". * * * Porém, nestes nossos tempos estranhos uma estrutura hermenêutica oculta se ilumina toda vez que alguém pede que não saiamos à rua. Sob esse pedido surge, dialeticamente, um outro significado que nega o que está explícito: toda vez que pedimos que se "fique em casa", imediatamente pressupomos a existência de uma rede social composta por pessoas que não têm o direito de ficar em casa. O confinamento de parte da população somente é possível se outra parte da população permanecer em seu trabalho pronta para servir a quem está isolado. Para que uma parte da população possa, por meio do

Fragmentos Filosóficos, Literários, e algo mais*

"(...) Tudo o que possamos ter aprendido com a leitura dos clássicos agora nos é necessário para julgar a obra de nossos contemporâneos, pois, enquanto houver vida neles, estarão lançando suas redes em algum abismo desconhecido para capturar novas formas, e teremos de lançar nossa imaginação em seu encalço, se quisermos aceitar e entender os singulares presentes que nos trazem de volta (...)"  "(...) E se o mundo conhecido for apenas o prelúdio de um panorama mais esplêndido ? (...)" "(...) uma atmosfera não só fina e suave, mas também rica, com mais do que conseguimos captar numa só leitura (...)" "(...) Quem vem depois aprimora o trabalho dos pioneiros (...)" "(...) o único conselho sobre leitura que alguém pode dar a outra pessoa é não aceitar conselhos, seguir seus instintos, usar sua razão, chegar a suas próprias conclusões (...) Admitir a entrada de autoridades, por mais paramentadas que estejam, em nossas bibliote

Estéticas da desconstrução*

"A poesia é de certo uma loucura,   (...)  É um defeito no cérebro (...)   É um grande favor, é muita esmola.   Dizer-lhes bravo!  À inspiração divina, e, quando tremem de miséria e fome, dar-lhes um leito no hospital dos loucos..."                                                                    Álvares de Azevedo   Rainer Maria Rilke inicia em 1898, aos 23 anos, os escritos do "Diário de Florença", por sugestão de Lou Andréas-Salomé. O inevitável viria depois: uma declaração de amor à vida e à beleza. Quiçá tradução de maior alcance na insinuação plural contida na descrição dos jardins, ruelas e esculturas.   Nas páginas iniciais o poeta já busca estabelecer pontos de contato com o coração da musa. Diz sua poesia: "Minha alegria permanece impessoal e sem brilho, enquanto dela não participares como confidente - ao menos por intermédio de alguma anotação íntima e sincera sobre esta alegria em um livro que te pertence". Entrelinhas de embriagu

Fragmentos Filosóficos, Literários, e algo mais*

   "(...) De pé junto à mesa, abri maquinalmente o livro que trouxera no dia anterior para compilação e, pouco a pouco, fui sendo absorvido pela leitura. Isso me acontece com frequência: pego um livro, abro por um momento para fazer uma consulta, e perco a tal ponto a noção do tempo com a leitura que me esqueço de tudo"  "(...) Em parte, devia-se também ao conhecimento demasiado limitado que tinha do mundo, à sua falta de costume de lidar com as pessoas, ao isolamento em seu canto. Passara a vida toda em seu cantinho, quase sem sair. E, por fim, ela havia desenvolvido um grau elevado essa característica das pessoas mais bondosas, transmitida talvez pelo pai, de cumular uma pessoa de elogios, de considerá-la obstinadamente melhor do que de fato é, de exagerar irrefletidamente tudo o que ela tem de bom. A decepção posterior é penosa para essas pessoas; e mais penoso ainda é sentir que a culpa disso é delas próprias (...)" "(...) deito no sofá (...) e fico imagina

Notas para uma instrução em filosofia clínica*

Quando iniciamos o curso de filosofia clínica, nos vemos diante de uma novidade ou, nas palavras de Thomas Kuhn, de um “novo paradigma”. Trata-se de uma área com um vocabulário inédito. Embora as palavras ou expressões possam soar como bem familiares, seu sentido tende a ser distinto do que obtemos no cotidiano ou do que os dicionários apontam. Não somente as palavras, mas todo o arcabouço metodológico nos abre os horizontes para novas perspectivas. Há nisso um desafio. Pois, além de um conhecimento teórico, a filosofia clínica é principalmente o aprendizado de uma prática. Dito isto, gostaria de sugerir caminhos para a melhor compreensão desse conteúdo. Não são os únicos, há inúmeros outros. Por isso, e levando em conta nossa singularidade, a proposta deve ser assimilada de acordo com o que fizer algum sentido para cada um de vocês. Algumas ideias poderão ser descartadas, outras, parcialmente aproveitadas, e haverá ainda as que serão inteiramente utilizadas. Portanto, usem de ac

Fragmentos Filosóficos, Devaneios, e algo mais*

"(...) Quem traz consigo tais conhecimentos e ainda se exercitou em algumas técnicas de uso prático, ficará, sem embargo, desarmado diante da realidade real, que sempre difere do que o cidadão comum entende por proximidade da vida e da realidade (...) E por que ? Porque não possui saber, pois saber significa: poder aprender" "(...) É na palavra, é na linguagem, que as coisas chegam a ser e são (...)" "Toda forma essencial do espírito é sempre ambígua. Quanto mais for incomparável com qualquer outra coisa, tanto maior será o índice de sua incompreensão" "Toda questão essencial da filosofia acha-se necessariamente fora de seu tempo (...) A filosofia se acha necessariamente fora de seu tempo, por pertencer àquelas poucas coisas, cujo destino consiste em nunca poder nem dever encontrar ressonância imediata na atualidade (...)" "(...) Quem instaura vigor, o criador que alcança o não-dito, que irrompe no não-pensado, que conquista o não-acontecido

Nota Oficial:

Os atendimentos na modalidade on line, devido aos eventos da Pandemia, estão sendo oferecidos por Filósofos Clínicos da Casa da Filosofia Clínica, devidamente habilitados e atuantes, com disponibilidade em suas agendas, residentes ou não na região sul do país. Inicialmente são acolhidos por uma supervisão que, posteriormente, encaminha os interessados para um membro da equipe.  Informações e orientações: casadafilosofiaclinica@gmail.com                                                                                                                             Coordenação

Livros Nadam*

“Não beberemos lá da água da vida. Não ficaremos curados. Não veremos sinais. Lá simplesmente teremos sido.” Peter Handke   Um livro tem que ter textura, folhas que cativam, páginas a iludir, tempo de esquecer e lembrar. O livro é o descanso da vida, a evocação do desconhecido, fonte suficiente para as ideias. Espaço da linguagem e da dança, as letras deslizando no pensar: o livro é o mundo, um novo alimento ao Ser. De todo o sentimento, o sentir é o caminho ao nada: estar sob o domínio da palavra, a cobertura da vida, um bolo cheio de ideias para se comer. Da escrita nasce o poema, a dor morre junto, no haver, a língua, a dobra do querer, o fim do livro é o convite para o não esquecer. A memória está salva, a nossa língua aprende nos livros, na linguagem que desfaz a solidão, o translucidar do conteúdo em forma. Tudo é claro e oculto, o tempo se fixa no ilimitado, tem de existir, depois poder morrer nas páginas.

Fragmentos Filosóficos, Literários, e algo mais*

"(...) Como diz Le Clésio, os grandes inovadores da humanidade foram nômades, que se alimentavam 'da relação e que, a cada vez, transgrediam as regras da territorialidade' (...) através do relacionamento entre culturas diferentes, alargamos nosso espaço interior (...)" "A menos que esteja congelada, enrijecida, destinada a uma repetição perpétua, a vida é movimento, deslocamento - sobretudo na época contemporânea, na qual a aceleração das mudanças colocam diante de nossos olhos um mundo constantemente remodelado, que obriga a redefinir, sem cessar, o lugar que nele ocupamos, os pontos de referência que dão sentido" "David Grossman: 'Quando escrevemos, sentimos o mundo se mover, ágil, transbordando de possibilidades (...) O simples fato de imaginar me dá novamente vida. (...) Eu escrevo e percebo que o emprego correto e preciso das palavras é como um remédio para uma doença" "(...) a leitura engendra a fala, desencadeia o fio das associaçõe

Existe um fenômeno curioso na cultura brasileira: a falsificação de credenciais acadêmicas*

A mentira do novo ministro da Educação, Carlos Decotelli, que afirma ter concluído um doutorado que não concluiu, ostentando há anos um título que não possui, não é a primeira e - tenho certeza - não será a última que veremos.   * * * A atual ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, mentiu: não é mestre em Educação, em Direito Constitucional nem em Direito da Família.   O atual ministro do Meio-Ambiente, Ricardo Salles, mentiu: não é mestre em Direito Público pela Yale. O Witzel, ainda governador do Rio, mentiu: jamais fez um doutorado-sanduíche em Harvard.   A Dilma mentiu: não concluiu o mestrado em Economia.   O mais impressionante é que, até que essas mentiras fossem reveladas, todos alardeavam publicamente, inclusive em seus currículos Lattes, os títulos inexistentes.   * * *   Esse fenômeno não se limita ao mundo da política.   Em 2017, a jovem Bel Pesce, a "Menina do Vale", não somente ostentava em palestras títulos acadêmicos qu

Fragmentos Filosóficos, Literários, e algo mais*

"Era eu um poeta estimulado pela filosofia e não um filósofo com faculdades poéticas. Gostava de admirar a beleza das coisas, descobrir no imperceptível, através do diminuto, a alma poética do universo" "Há entre mim e o mundo uma névoa que impede que eu veja as coisas como verdadeiramente são - como são para os outros - sinto isto" "Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas (...)" "(...) Ora um desvio patológico equilibrado é uma de duas cousas - ou o gênio ou o talento. Ambos estes fenômenos são desvios patológicos, porque, biologicamente considerados são anormais; porém não são só anormais, porque têm uma aceitação exterior, tendo, portanto, um equilíbrio. A esse desvio equilibrado chamar-se-á gênio quando é sintético, talento quando é analítico; gênio quando resulta da fusão original de vários elementos, talento quand

Discursos de Transgressão***

"Nascer com o mundo sem passar pelas palavras, eis efetivamente o que parece estar em jogo em todas as práticas tribais e em seus excessos"                                                          Michel Maffesoli A pluralidade subjetiva internada em uma só pessoa aprecia o caos para ensaiar releituras existenciais. Mesmo quando inadequado à estrutura dos vislumbres, segue a desvendar instantes em busca de algo para chamar de seu. Os paradoxos de transgressão apreciam a desleitura dos contextos que vão surgindo. Interrogar contraditório de longo alcance na interseção com a família e amigos. A distorção pode fazer transbordar, na superação dos medos e inseguranças um convívio novo com sua tribo. Ao desmerecer as regras do jogo cultural onde se encontra, atrai para si não apenas desconforto e críticas, mas reações de contrariedade e incompreensão. Em meio a isso tudo, a pessoa busca algum ponto de apoio para entender os indizíveis desatinos. Nas palavras d

Fragmentos Filosóficos, Devaneios, e algo mais*

"(...) No tempo em que os baleeiros de Nantucket passavam muitos anos no mar, o jovem Melville (22 anos) embarca num deles (...) e percorre os oceanos. De volta à América, seus relatos de viagem obtêm um certo sucesso e ele publica em seguida seus grandes livros, que são recebidos com indiferença e incompreensão (...)"  "É quase tão difícil falar em poucas páginas de uma obra que tem a dimensão tumultuosa dos oceanos em que nasceu quanto resumir a Bíblia ou condensar Shakespeare (...) para julgar o gênio de Melville, é indispensável admitir que suas obras traçam uma experiência espiritual de uma intensidade sem igual (...)" "(...) o velho Melville nos anuncia que aceita (...) que a inocência e a beleza sejam mortas a fim de que uma ordem seja mantida e que o navio dos homens continue a avançar em direção a um horizonte desconhecido (...) " "(...) é muito difícil aprender qualquer coisa sobre a conduta dos homens lendo as máximas de La Rochefoucaild. E

O dia em que só queria criar um personagem e conheci uma assessora de mendigo*

Era um domingo ensolarado, de primavera, em Porto Alegre. Como é natural na estação das brisas e flores, um passeio no parque parecia a melhor opção para um programa vespertino. Peguei minha moto e, no trajeto, vivenciando a clássica mais famosa dos librianos (a dificuldade de escolher), estava em dúvida entre a Redenção, o Parcão e o Marinha, as três possibilidades mais próximas… A decisão ficou clara no momento em que lembrei do porquê do passeio: inspirar-me para a criação de um personagem. Destino definido: a Redenção. A Redenção ou o Brique, cujo nome na verdade é Parque Farroupilha, reúne dezenas de milhares de pessoas a cada final de semana. É o palco privilegiado para observar uma diversidade gigante da ‘fauna’ humana, transitando de uma ponta a outra em qualquer critério que você possa usar para ‘classificação’ das pessoas: social, financeiro, cultural… Ao sentar em um banco, ao seu lado pode estar um professor pós-doc da universidade federal ou algum beneficiário de program

Visitas