Era um domingo ensolarado, de primavera, em Porto Alegre. Como é natural na estação das brisas e flores, um passeio no parque parecia a melhor opção para um programa vespertino. Peguei minha moto e, no trajeto, vivenciando a clássica mais famosa dos librianos (a dificuldade de escolher), estava em dúvida entre a Redenção, o Parcão e o Marinha, as três possibilidades mais próximas… A decisão ficou clara no momento em que lembrei do porquê do passeio: inspirar-me para a criação de um personagem. Destino definido: a Redenção.
A Redenção ou o Brique,
cujo nome na verdade é Parque Farroupilha, reúne dezenas de milhares de pessoas
a cada final de semana. É o palco privilegiado para observar uma diversidade
gigante da ‘fauna’ humana, transitando de uma ponta a outra em qualquer
critério que você possa usar para ‘classificação’ das pessoas: social,
financeiro, cultural… Ao sentar em um banco, ao seu lado pode estar um
professor pós-doc da universidade federal ou algum beneficiário de programa
social.
Escolhi um banco vazio de
frente para a feirinha de artesanato. Aquela rua é um dos principais pontos de
acesso ao parque. Imaginei que ali poderia apreciar com calma uma ampla
representação dos tipos presentes. Desfilavam casais com seus filhos e cães, jovens
namorados, as tribos de adolescentes vestidos de preto, amigos conversando
alegremente, refinadas moças em seus trajes esportivos e também a despojada
galera…
Não demorou para ao meu
lado sentar uma senhora. Já tenho minha personagem, pensei. Em alguns minutos
eu abriria o diálogo, iniciando pelo provável comentário sobre o tempo e depois
avançando para coisas mais específicas, como nome, de onde era, se já tinha
comprado alguma coisa na feirinha… E aí perguntei o que ela fazia da vida.
Quando ela respondeu, precisei que ela repetisse, pois não entendi. Os
especialistas explicam que isso acontece quando o que ouvimos soa por demais
absurdo que por instantes congela, ou anestesia, nossa capacidade de
compreensão:
– Eu sou assessora
daquele cara aí – e apontou para um mendigo, ao chão, pedindo esmola.
– Assessora de mendigo?
Como é isso? – perguntei.
– Ele me contrata pra
levar comida pra ele, pra tirar e botar no táxi. E também pra cuidar do
dinheiro, porque tem os pivetes que ‘róbam’ dele.
Com a resposta dançando
na minha cabeça, fiquei alguns minutos observando o chefe da minha personagem.
Minha rápida estatística apontava para uma doação a cada dez ou 15 pessoas que
passavam por ali. Moedinhas, notas de baixo valor…
– E rende? – perguntei.
– Ô se rende. Aqui por
dia ele tira uns 300 reais. Durante a semana o ponto dele é na Rua da Praia. Lá
dá menos. Uns 150.
De cabeça calculei o
pro-labore do moço. Ele estava (bem) melhor que eu, na época uma foquinha de
jornalismo dando os primeiros passos na jornada de trabalho na capital.
– É uma baita grana,
hein. E vem de táxi?
– Sim. Vem e vai. Mora em
Alvorada (um município vizinho, também na região metropolitana).
Ela continuou dando
detalhes da rotina de trabalho. Estava muito brava, porque no dia anterior o
mendigo havia recebido uma marmita com churrasco e não compartilhou. Não havia
pensado na assessora, nem nos filhos dela, em casa, passando necessidade. O
mendigo nem gostava de carne, ou não tinha dentes fortes para isso (além das
pernas tortas, mantinha, segundo ela, outros problemas para sensibilizar as
pessoas) e preferiu levar a comida para casa e alimentar os cachorros. Consta
também que tinha casa própria e até automóvel.
Voltei para casa, preparei um delicioso café e sentei para escrever. Não saiu uma única palavra sequer. A realidade era muito superior à ficção.
*Sandra Veroneze
Jornalista. Escritora. Diretora
da Editora Pragmatha. Filósofa Clínica.
São Paulo/SP
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