Dizem que amor feliz não
faz boa literatura. Da mesma forma, são os casos mais sangrentos e vis que
costumam chamar a atenção dos leitores. Traição e morte são elementos muito
comuns nas grandes histórias literárias. Explorar o lado sombrio do ser humano
seria o segredo do sucesso?
Então, na minha saga de
candidata a escritora procurando o personagem perfeito, pensei em criar um mau,
bem ruim. Um assassino, talvez. Ladrão… Alguém que rouba milhões. Roubaria do
governo, para tornar o crime ainda mais repugnante, porque evaporaria dinheiro
da saúde, da educação… Estupro é sempre algo que revolta, mas eu precisaria de
um estômago mais forte para explorá-lo em uma narrativa ficcional…
Em meio a uma pandemia,
isolamento social, mortes e um tanto de outras tragédias que já existem na vida
real, pensei então em desafiar o senso comum. Que tal criar uma história fofa?
Um desenrolar com final feliz, que levasse o leitor, na última página, a um
longo suspiro e ao pensamento de que ah, como a vida pode ser boa!
Quem sabe uma narrativa
romântica? Alguns percalços seriam encontrados pelo caminho, mas no final o
grande amor dos personagens seria capaz de vencer tudo e todos. Ou uma história
sobre um grande ideal? O personagem poderia de um otimismo inabalável, pensando
em elevar a humanidade a um nível muito superior de consciência e bem-estar.
Também pensei em
explorar, quem sabe, a inocência? Chega de pensamentos torpes, distorções,
pessoas querendo vencer na vida a qualquer custo, desrespeito, coisas tão
comuns na vida adulta… Exploraria o olhar mais puro que só uma criança cheia de
amor e desejada pode ter…
Taí, gostei desta
perspectiva. E voltei os pensamentos à infância. Na busca pela inspiração,
procurei algum personagem, alguém para ser o depositário de todas as virtudes,
alegrias e esperanças que se pode ter no futuro quando se mora em um lugar que,
guardadas as proporções, até dá na vida algumas, senão garantias, pelo menos
seguranças.
Não sei por qual motivo,
mas lembrei do “guri do leite”. O guri do leite passava todo final de tarde na minha
rua. Loirinho, de olho azul (características de nove entre dez crianças quando
se mora numa cidade colonizada por alemães), entregava as encomendas para os
clientes. Carregava as garrafas numa espécie de colete de jeans, provavelmente
reaproveitado de alguma calça velha, preso nos ombros. Se não me engano, eram
três ou quatro garrafas na frente e a mesma quantidade atrás.
Era o trabalho dele.
Tinha responsabilidades. As famílias precisavam se alimentar! O trampo dele era
muito importante. Dele dependia a saúde e a vida de muitas pessoas. E ele
tinha, também, um salário! No auge dos nossos oito ou nove anos, confesso,
ninguém na turma se preocupava com a saúde das pessoas. Nós prestávamos muita
atenção era no salário dele. Sim, ele era r-e-m-u-n-e-r-a-d-o para, todo final
de tarde, entregar o leite. Todos tínhamos uma certa inveja, claro, porque ele
tinha dinheiro para, por exemplo, comprar merenda no colégio. Eram bolos,
sonhos, cuecas viradas e outras coisas que tínhamos em casa também, feitos
inclusive com o leite que ele entregava…
Pensando agora, veja que
louco! O leite vinha de uma vaca. Uma vaca holandesa, certamente. A vaca
holandesa é linda, malhada branco e preto. Imagine um dálmata gigante. Não, não
imagine… Não faz muito sentido. Veja, que maravilha, ter uma vaquinha em casa?
Como é doce a vida no interior. Agora até imaginei uma aqui na minha sacada, no
12º andar… (efeito da quarentena na cabeça).
Voltando ao guri do
leite… Desisti de escrever sobre ele. Aquilo era trabalho infantil. Ele devia
mesmo era estar brincando, jogando bola, fazendo a lição de casa… A vaquinha da
sacada mugiu. Ela concorda.
*Sandra Veroneze
Jornalista. Editora.
Escritora. Filósofa Clínica.
São Paulo/SP
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