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Prolegômenos sobre a vida nas coisas*

                   

                                      “(...) Caravelas sonhando imóveis sobre velhos pianos...”
                                                                                Mário Quintana

Na ótica das coisas, existe um deus que as faz nascer, morrer, reviver. Nelas mesmas, se encontra a versão silenciosa das múltiplas possibilidades. Tem as coisas que ofuscam a visão e as que a pluralizam, ainda àquelas à espera do olhar absurdo. Esse contexto de caos e harmonia convive na estrutura de quase tudo.      

À primeira vista as coisas podem enganar intencionalidades. Ao lhe atribuirmos um nome, condição ou propriedade, ainda assim não se esgota sua condição original. Ao distorcer a impressão inicial, é possível atribuir-lhe um novo significado, concedendo-lhe razões desconhecidas. Ao ser inenarrável de forma definitiva, carrega a vertigem de suas outras regiões.

Entre uma subjetividade e outra, as coisas reivindicam uma chave de acesso. Para conhecer sua condição provisória, é necessário saber a interseção que a define. A coisa precisa de uma não-coisa (que somos nós) para fazer algum sentido. No caso de um poeta, sonhador, filósofo, visitará o mundo absurdo da não palavra, de onde se originam todas as coisas.

Uma coisa, sendo algo para alguém, deixa de ser indefinível para se tornar. Existe um agora por onde a coisa se diz, delimita aquilo que irá apresentar. Assim, se constitui uma autonomia compartilhada entre o sujeito e a coisa. Para qualificar o encontro onde material e imaterial se conjugam, reivindica-se um passeio pela esquina das coisas distraídas.

Através de uma estética do inusitado, em um mundo desmerecido, é possível sentir os rumores da coisa presente em todas as coisas. Nesse sentido, existem coisas conhecíveis e coisas irreconhecíveis. Momentos de reviravolta, onde as coisas, sendo elas mesmas, podem ser outras. Essa nuança da coisa em si parece se divertir ao aparecer como simulacro de coisa nenhuma.

Ao querer dizer algo mais sobre uma coisa, sempre restam traços desmerecidos, pois ela resguarda, para si mesma, as memórias dos seus muros reconstruídos. A expressividade de uma coisa adquire vida na exceção de um encontro. As revisitas a esse lugar descreve algo mais ao que se perdeu.  

Sua tradução requer a captura daquilo silenciado nas coisas, por onde retrata o que não disse. Assim adquire vida ao conviver com a não-coisa, em uma janelinha por onde deixa entrever suas verdades. Podem ser coisas vividas nos espaços esquecidos, onde percorrem - sem sair do lugar - calçadas, jardins, sonhando flores sem formigas.

Em cada coisa existe um excesso de outras coisas. As coisas, sem sair de si, aguardam o momento para se manifestar. Pode ser a visão distorcida, uma escuta, a lógica de um devaneio precursor. A rotina imprevisível dos dias rascunha coisas nem sempre visíveis ao olho nu das palavras. No ângulo de cada um existe uma multidão de coisas à espera para se mostrar.

*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico não filiado a Anfic

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