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A Clínica do Filósofo***


"Qual é esse projeto secreto, inacessível e inexistente cuja pressão constante se exerce, de fato, sobre os homens, e particularmente sobre os homens problemáticos, os criadores, os intelectuais, que estão, a cada instante, como que disponíveis e perigosamente novos ?"
                                                                         Maurice Balchot

Venho pensando sobre o lugar onde a clínica acontece. Não o endereço físico dos atendimentos, seja ele na beira da praia, em um café, no consultório. Essas ideias buscam dar visibilidade ao território onde a interseção se realiza. Uma transcendência no esboço dos propósitos, os contornos, as derivações, os significados.

Essa inquietude sobre as dialéticas do instante terapêutico quer pensar sobre a natureza desse encontro. A própria eficácia das sessões é refém desse vazio à espera de preenchimento. Nesse vislumbre de foco caleidoscópico, o filósofo clínico exercita sua arte cuidadora. Seu perambular aprendiz desloca-se pelas vias de um labirinto, inicialmente desconhecido. 

Ao possuir o dom da irrealidade, cabe ao filósofo considerar as coisas desconsideradas. Seu teor não cabe na gaveta das tipologias, no armário das classificações, na contenção do alienista. Aqui a farmácia de maior valor se encontra no vocabulário da singularidade. Esse ponto de partida reivindica um ajuste dos limites da expressividade (de lado a lado da relação). 

Nessa região integrativa, o processo de tornar-se já é ser. Localização existencial onde um fenômeno de muitos nomes acontece. Ao deslocar-se pelo universo interior, o sujeito aprecia novos horizontes, investiga-se na arte dos convívios, vivencia uma quase levitação. Ao ser preenchimento, a narrativa da historicidade, por si só, pode atualizar vislumbres sobre o velho álbum. Esse deslocamento, partindo de um aqui-agora, aprecia expandir-se. 

O discurso literal possui significados nem sempre visíveis à primeira vista. A escolha das palavras pode ser suplemento, mediação, esconderijo. A fidelidade ou infidelidade dos relatos possui a mesma origem estrutural. Assim, nessa posição excepcional aos eventos excepcionais, uma lógica da irrealidade pode ser matéria-prima a qualificar transgressões, inventividades, descobrimentos. 

Uma fonte de inspiração se movimenta de si mesma para seus outros. Ao se buscar a extraordinária condição, instaura-se um recanto para experienciar aquilo fora do cotidiano. O chão onde a clínica do filósofo acontece deixa-se entrever nos rastros de sua fenomenologia.

A atuação do filósofo clínico regula-se pela natureza dos acordos, a plasticidade do papel existencial, as traduções discursivas. Seu teor transita, apropriando matéria-prima, entre a hora-relógio e o tempo subjetivo. As repercussões e ressonâncias dessas intervenções prosseguem no cotidiano da pessoa, como aliadas aos ensaios existenciais. 

Algo de novo acontece quando duas ou mais pessoas se encontram, visitam um lugar comum, que se altera com sua presença. Assim, pode-se antever a quimera do retirante de si para si mesmo sendo outro. Ao acessar essas lonjuras, reivindica-se a geografia da categoria lugar, para acolher a tentação irresistível de ser aquilo que ainda não é. 

*Hélio Strassburger in "A palavra fora de si - Anotações de filosofia clínica e linguagem". Ed. Multifoco/RJ. 2017.

**Filósofo Clínico não filiado a Anfic. 

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