Para uma corrente da
nossa política, a culpa da tragédia que é a educação brasileira é de um
"marxismo" que teria sido introduzido nas reformas do MEC justamente
pelo Paulo Freire. Essa idéia foi expressada nesses termos inclusive pelo
economista que ocupa o ministério da Educação.
Mas a educação brasileira
segue um projeto marxista?
* * *
Em primeiro lugar, é
questionável que o "método Paulo Freire" de alfabetização (que,
essencialmente, propõe aproximar o aprendizado das letras às circunstâncias do
aluno) seja particularmente marxista - pois esse método serve perfeitamente
também para a "educação para o trabalho", que de marxista não tem
nada, e é oposto a outras concepções pedagógicas explicitamente marxistas, como
a pedagogia histórico-crítica.
Em segundo lugar, a
denúncia paulofreiriana presente na "Pedagogia do Oprimido" (1968)
contra a "educação bancária", que conduz o aluno ao hábito de desejar
a opressão, é, antes de "esquerdista", libertária: não somente os
marxistas, mas também os liberais clássicos (aqueles mais interessados nas
liberdades políticas do que no dinheiro) e os anarquistas concordariam
plenamente com ela.
Finalmente, o Paulo
Freire não pode ter estabelecido o "marxismo" na educação brasileira
porque nunca propôs um programa educacional sistemático. Como o MEC poderia
seguir um programa que nunca foi formulado?
* * *
Por outro lado, um
programa sistemático explícita e inegavelmente marxista é o da pedagogia
histórico-crítica criada pelo Dermeval Saviani (a partir de "Escola e Democracia",
1983) e desenvolvida por ele e pelo Newton Duarte. Para eles, a educação
escolar deve dar à classe dominada acesso aos recursos culturais da classe
dominante - ou seja: todos os alunos, inclusive (e sobretudo) os alunos pobres,
devem aprender o que a humanidade produziu de mais elevado no campo da ciência,
da arte e da cultura em geral, para que possam, assim, romper a lógica da
opressão da elite sobre a classe trabalhadora.
Em outras palavras: de
acordo com a perspectiva marxista do Saviani, a educação escolar precisa ter
uma qualidade extraordinária - inclusive tornando possível a apropriação, por
parte dos alunos pobres, da alta cultura universal (na literatura, na música,
nas artes clássicas, por exemplo): qualquer aluno deveria ter acesso à obra do
Shakespeare, do Bach e do Van Gogh como componentes escolares.
Naturalmente, essa
proposta realmente marxista, que concebe a educação como instrumento para a
verdadeira autonomia da classe trabalhadora, jamais teve nenhum eco no MEC -
que, pelo menos desde 1971 (com a reforma educacional criada pelo positivismo
militar que substituiu a divisão, no segundo grau, entre o "clássico"
e o "científico" pela "formação para o trabalho" de
orientação tecnocientífica) caminha na direção contrária, determinando uma
"educação para o trabalho" para os pobres e para a classe média,
longe de tudo o que possa significar a aquisição da cultura universal.
* * *
Tampouco passou pelo MEC
outra abordagem de fato marxista em relação à educação - esta, crítica, feita
por Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron em "A Reprodução: elementos
para uma teoria do sistema de ensino" (1970). Bourdieu e Passeron tratam
do modelo escolar francês, mas suas idéias se aplicam ao brasileiro. Para eles,
qualquer ação pedagógica é violência simbólica e impõe um arbirtrário cultural
- uma concepção que tanto a esquerda quanto a direita detestaram nos anos 70,
por revelar que a opressão está na raiz de qualquer sistema educacional.
* * *
O MEC também não tomou
conhecimento de outra crítica, também à esquerda, às escolas. Em
"Sociedade sem Escolas" (1970), Ivan Illich acaba, por outra via,
convergindo com as idéias de Bourdieu e Passeron. Para Illich, a escola é mais
um modo de institucionalizar a vida, de subjugar toda a existência do ser humano
a um poder controlador institucional anônimo e quase inescapável.
Houvesse o MEC
incorporado essas críticas, teríamos campo para propostas não-diretivas como
Summerhill ou a Escola da Ponte - ou mesmo a liberação do homeschooling.
* * *
Amigos, a nossa educação
nunca foi marxista. Nos últimos quarenta e oito anos, a orientação do MEC foi,
verdadeiramente, oposta: visou à formação do cidadão
bom-funcionário-e-consumidor-previsível, e não à ascensão econômica e política
da classe trabalhadora por meio da sua ascensão cultural, como uma educação
marxista proporia.
Em suma: o programa do
MEC não pode ser paulofreiriano, pois o Paulo Freire não criou um sistema
educacional. Não é marxista, mas voltado para o "mercado de
trabalho". E, por isso, tem sido, nas últimas cinco décadas, o principal
agente emburrecedor do povo brasileiro.
*Prof. Dr. Gustavo
Bertoche
Filósofo. Escritor.
Musicista. Filósofo Clínico. Livre Pensador.
Teresópolis/RJ
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