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A escritora de San Fernando*

“A atmosfera dessa amizade pura é o silêncio, mais puro que a palavra. Porque falamos para os outros, mas nos calamos para nós mesmos.”                                                                           Marcel Proust Existem milhares de faróis espalhados, milhões imaginados por pessoas que gostariam de seguir viagem, dos que gostariam de aportar em terra segura, dos que fogem dos perigos dos homens, dos que querem se proteger das tempestades, dos que desejam uma luz para orientar seus projetos, seus navios. Conheci uma jovem “escritora”, ela fez questão de se autointitular iniciante de escritora, de alma já poeta, desde sempre, e que desde o tempo de escola escrevia, vivia a poesia, leitora assídua de livros de poesia. Foi em uma venda dentro do mercado San Fernando em Madri. Estávamos lá para provar tapas e tomar um vinho branco fresco, era um sábado quente, pleno outono, mas o dia estava de verão. Perguntou de onde éramos, disse, Brasil, ela sorriu, disse que

Fragmentos Filosóficos, Devaneios, e algo mais*

"(...) Daí a função de uma arte aberta como metáfora epistemológica: num mundo em que a descontinuidade dos fenômenos pôs em crise a possibilidade de uma imagem unitária e definitiva, esta sugere um modo de ver aquilo que se vive, e vendo-o, aceitá-lo, integrá-lo em nossa sensibilidade. Uma obra aberta enfrenta plenamente a tarefa de oferecer uma imagem da descontinuidade. Ela se coloca como mediadora entre a abstrata categoria da metodologia científica e a matéria viva de nossa sensibilidade; quase como uma espécie de esquema transcendental que nos permite compreender novos aspectos do mundo" "A abertura, por seu lado, é garantia de um tipo de fruição particularmente rico e surpreendente, que nossa civilização procura alcançar como valor dos mais preciosos, pois todos os dados de nossa cultura nos induzem a conceber, sentir, e portanto ver, o mundo segundo a categoria da possibilidade" "Obra Aberta como proposta de um campo de possibilidades inter

O Guri do Leite*

Dizem que amor feliz não faz boa literatura. Da mesma forma, são os casos mais sangrentos e vis que costumam chamar a atenção dos leitores. Traição e morte são elementos muito comuns nas grandes histórias literárias. Explorar o lado sombrio do ser humano seria o segredo do sucesso? Então, na minha saga de candidata a escritora procurando o personagem perfeito, pensei em criar um mau, bem ruim. Um assassino, talvez. Ladrão… Alguém que rouba milhões. Roubaria do governo, para tornar o crime ainda mais repugnante, porque evaporaria dinheiro da saúde, da educação… Estupro é sempre algo que revolta, mas eu precisaria de um estômago mais forte para explorá-lo em uma narrativa ficcional… Em meio a uma pandemia, isolamento social, mortes e um tanto de outras tragédias que já existem na vida real, pensei então em desafiar o senso comum. Que tal criar uma história fofa? Um desenrolar com final feliz, que levasse o leitor, na última página, a um longo suspiro e ao pensamento de que ah

Fragmentos Filosóficos, Literários, e algo mais*

"(...) 'Se sou poeta ou ator, não o sou para escrever ou declamar poesias, mas para vivê-las', afirma Antonin Artaud numa de suas cartas a Henri Parisot, escrita do asilo de alienados de Rodez (...) este homem pagou cedo o preço de quem marcha adiante (...)" "Com Antonin Artaud calou na França uma palavra dilacerada que só esteve pela metade do lado dos vivos enquanto o resto, partindo de uma linguagem inalcançável, invocava e propunha uma realidade vislumbrada nas insônias de Rodez (...)" "(...) Artaud não é nem muito nem bem lido em parte alguma, uma vez que a sua significação já definitiva é a do Surrealismo no mais alto e difícil grau de autenticidade: um surrealismo não literário, anti e extraliterário (...)" "Se o poeta é sempre 'algum outro', sua poesia tende a ser igualmente 'a partir de outra coisa', a encerrar visões multiformes da realidade na recriação singularíssima da palavra" "O poe

Outono*

Os soluços finos Dos violinos De outono Ferem minha alma Com a lânguida e calma monotonia do sono. Paul Verlaine (tradução de Juremir Machado da Silva) Meu amor é uma flor perdida na escuridão, eu sei de tudo e nada disse que sei nada sobre a vida. Chegada a hora de me manifestar, a razão anda perdida, os fanáticos percorrem os corpos. Eles são o fundamento desta pobreza de espírito, ainda ando devagar, quase correndo, e a fronteira é parte da vida. Devo ir adiante sem olhar para trás, devo ir avante remoendo a linguagem, desopilando o espírito? Tenho que escutar a sabedoria do velho sentado à beira da estrada, logo em frente a um bar, cuja placa deixa claro aos viajantes: “Atendemos só os filhos de Deus”. O velho olha-me e diz que não é para levar a sério, que entre e compre o que bem quiser, pois o filho dele é só um fanático, não entende nada da vida, só dizer que é o que ele quer que seja, que eu compre e caia fora. Antes que ele percebesse já tinha

Fragmentos Filosóficos, Devaneios, e algo mais*

"A madrugada tem grandeza misteriosa que se compõe de restos de sonho e começos de pensamento" "O vento encontra-se repleto de semelhante mistério. Do mesmo modo o mar. Também este é complicado; sob os vagalhões de água, que se vêem. Compõe-se de tudo. De todas as misturas, o oceano é a mais indivisível e a mais profunda. Experimente-se conhecer esse caos, tão enorme que termina à superfície. É o recipiente universal, reservatório para as fecundações, cadinho para as transformações" "A diversidade solúvel funde-se em sua unidade. Possui tantos elementos que se transforma em identidade. Está todo em cada uma de suas gotas. Porque está repleto de tempestades, torna-se equilíbrio" "As obras da natureza, não menos supremas que as obras do gênio, contém algo do absoluto e impõem-se. O que tem de inesperado faz que o espírito lhes obedeça imperiosamente; sente-se, no caso, premeditação que se encontra fora do homem. Não são nunca mais surpr

Notas sobre leituras e aprendizados*

Há pouco mais de dez anos, resolvi ler algum livro de Fábio de Melo – isso mesmo, o padre que também é cantor e escritor. Estava em um ritmo de leituras de filosofia e de literatura, sobretudo, europeia. Estava acostumado com densidade e complexidade. Quando iniciei a leitura, percebi a diferença. Achei o texto bastante simples – na época, esse era um de meus posicionamentos críticos ao texto. Afinal, o público a que se destinava não era necessariamente de estudantes de filosofia e, muito menos, recém formados nessa área. Mas a diferença maior foi a do estilo de escrita. Acostumado a ler e, mais ainda, escrever quase parágrafos inteiros com um ou dois pontos repletos de vírgulas, deparei-me com um texto de frases curtas e quase sem vírgulas. Esse era outro ponto que me levou a “olhar torto” para o texto. Fábio de Melo opta por pontos em vez de vírgulas. Como mantém a sequência nas frases dos parágrafos, pouco importa se o que separa uma sentença de outra são pontos ou v

Fragmentos Filosóficos, Devaneios, e algo mais*

"Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida" "Não há linha reta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto dos desvios necessários criados a cada vez para revelar a vida nas coisas" "(...) A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta" "(...) É como se alguns caminhos virtuais se colassem ao caminho real, que assim recebe deles novos traçados, novas trajetórias. Um mapa de virtualidades, traçado pela arte, se superpõe ao mapa real cujos percursos ela transforma" "(...) visões fragmentadas que passam pelas palavras de um poeta, pelas cores de um pintor ou os sons de um músico" "(...) Só Dioniso, o artista criador, atinge a potência das metamorfoses que o faz devir, dando testemunho de uma vida que jorra; ele eleva a potência do falso a um grau que se efetua não mais na forma, porém

Uma epistemologia dos subúrbios***

“A vida não é senão uma procissão de sombras, e sabe Deus por que as abraçamos tão avidamente e as vemos partir com tal angústia, já que não passam de sombras”                                                                              Virgínia Woolf A natureza também insinua seus originais na impermanência de um talvez. Instantes em que a conexão propõe a novidade discursiva ao sem rosto das aparências. Assim, para além da mentira civilizada, outras verdades ensaiam inéditas versões. Nem sempre em busca de tradução, essa característica existencial realça pontos de interseção com universos absurdos. Seu sentido inédito, antes de ser provável, descreve-se na escassez poderosa de um quase. Seu dizer marginal aparece como vontade de transgressão. Com sua pronúncia irreconhecível a escuta muda, e o momento fugaz dos achados carece a surgir distorcido. Ao ter o anonimato preservado, se distancia das ingerências de ser igual. Sua indeterminação sugere um vocabulário por ch

Fragmentos Filosóficos, Devaneios, e algo mais*

"Não gosto de conclusões. Conclusões são chaves que fecham (...) Cada conclusão faz parar o pensamento. Como nos livros de Agatha Christie: resolvido o crime, nada sobra em que pensar. E não adianta ler o livro de novo. Quando o pensamento aparece assassinado, pode-se ter a certeza de que o criminoso foi uma conclusão" "A ciência normal, diz T. S. Kuhn, 'não procura nem novidades de fato nem de teoria. Quando é bem-sucedida, ela não encontra novidades'" "'Estou muito curioso sobre aquilo que o senhor irá dizer', alguém comentou a Wilfriede Bion, pouco antes de uma de suas conferências. Ao que ele retrucou: 'Eu também...'" "(...) os poetas buscam as palavras que moram no silêncio (...)" "Palavras de ordem não toleram as brumas, pois é lá que moram os sonhos. Luminosidade total para tornar impossível sonhar. Pois os sonhos são testemunhos de que a alma se recusa a se tornar um pássaro engaiolado&quo

Copie e cole*

Foi nossa primeira quarentena, não tínhamos experiência alguma. Fomos pegos de surpresa,   pensávamos que seria apenas ficar sem sair pra rua e se proteger do vírus. Imaginávamos que talvez durasse uns quinze a vinte dias. Arrumaríamos armários, assistiríamos filmes, leríamos livros, descansaríamos. Enfim, colocaríamos em ordem todas aquelas coisas que reclamávamos não ter tempo pra fazer. Estamos conseguindo dar jeito nas coisas materiais, só que a ordem das coisas sentimentais não estava prevista e o furo foi mais embaixo. E bem mais profundo. Meio insegura do que estava por vir, cheguei a te convidar pra ficarmos juntos aqui em casa. Estava disposta a tentar viver vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana trancada com meu amor entre quatro paredes. Teríamos um tempo só para nós. Seria uma experiência arriscada, nossa intimidade seria colocada à prova. Talvez acabasse com nossa relação, mas se desse certo, seria maravilhoso, a quarentena dos sonhos. Percebendo mi

Fragmentos Filosóficos, Devaneios, e algo mais*

"O verdadeiro problema da compreensão aparece quando, no esforço de compreender um conteúdo, coloca-se a pergunta reflexiva de como o outro chegou à sua opinião. Pois é evidente que um questionamento como este anuncia uma forma de alteridade bem diferente, e significa, em último caso, a renúncia a um sentido comum" "(...) pode-se compreender tudo sobre o que se tem interesse, somente se reconhecermos 'historicamente' o espírito do autor, isto é, superando nossos preconceitos, não pensamos noutras coisas do que nas que o autor pôde ter em mente" "Ganhar um horizonte quer dizer sempre aprender a ver mais além do próximo e do muito próximo, não para apartá-lo da vista, senão que precisamente para vê-lo melhor, integrando-o em um todo maior e em padrões mais corretos" "(...) Por isso, deve ser uma tarefa constante impedir uma assimilação precipitada do passado com as próprias expectativas de sentido. Só então se chega a ouvir a tr

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