Foi nossa primeira
quarentena, não tínhamos experiência alguma. Fomos pegos de surpresa, pensávamos que seria apenas ficar sem sair
pra rua e se proteger do vírus. Imaginávamos que talvez durasse uns quinze a
vinte dias. Arrumaríamos armários, assistiríamos filmes, leríamos livros,
descansaríamos. Enfim, colocaríamos em ordem todas aquelas coisas que
reclamávamos não ter tempo pra fazer. Estamos conseguindo dar jeito nas coisas
materiais, só que a ordem das coisas sentimentais não estava prevista e o furo foi
mais embaixo. E bem mais profundo.
Meio insegura do que
estava por vir, cheguei a te convidar pra ficarmos juntos aqui em casa. Estava
disposta a tentar viver vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana
trancada com meu amor entre quatro paredes. Teríamos um tempo só para nós.
Seria uma experiência arriscada, nossa intimidade seria colocada à prova.
Talvez acabasse com nossa relação, mas se desse certo, seria maravilhoso, a
quarentena dos sonhos.
Percebendo minha
insegurança na proposta, você vacilou, hesitou, e, por fim, pressionados pelo
medo (do vírus e do companheiro), resolvemos que o melhor seria cada um ficar
no seu canto, cuidando de sua individualidade. Covardemente, deixamos o temor
decidir por nós.
Os primeiros dias foram
bem tranquilos e dentro do que havíamos imaginado, mas depois as coisas pararam
de funcionar. Comecei a sentir tua falta. Não pela distância, mas pela
ausência. A distância é apenas um teste pra ver o quanto o amor é capaz de
viajar. Fomos nos afastando, perdendo a intimidade, transformando-nos em amigos
que se falam ao telefone. Mensagens de bom dia ou boa noite pelo whatsapp não
me satisfaziam mais. Quando vinham acompanhadas com um emoji de beijinho ou de
coração era como se estivesse me mandando embora ao invés de aproximar.
Precisava da tua voz junto ao meu ouvido, pelo menos a voz.
Precisava de mensagens
pessoais e exclusivas, frases dizendo que os dias não podem ser bons se não
podemos nos ver, que tua cama havia virado um deserto sem mim, que havias
sonhado comigo e contasse o sonho com todos os detalhes. Distantes, poderíamos
ter feito tanta coisa juntos. Imaginava
te mandar uma receita e cozinharmos ao mesmo tempo um único prato, assistir ao
mesmo filme na mesma hora, interrompendo pra conversarmos ou buscar uma pipoca
doce. Desejava receber fotos e vídeos mostrando como estava tua casa, teu
corpo, nossas plantas. Sonhava em receber um pijama, uma camiseta suada, uma
cueca, qualquer coisa que me fizesse voltar a sentir o teu cheiro. Fantasias
eróticas e não eróticas não me faltaram. Tempo pra esperar também não.
Nada disso aconteceu.
Precisava do teu amor aqui e agora, não de promessas pra depois da quarentena.
Nos telefonemas de rotina antes de dormir,
contavas que estavas bem, gostando do isolamento, desgostando da
política, engordando, perdendo dinheiro na bolsa de ações. Por vezes bocejava,
dizias que estava com sono, e isso no único momento que conseguíamos nos
falar. Se palavras já causam mal
entendidos, imagina o que um bocejo no meio da ligação pode causar. Não
consegui te sentir comigo. Embora nada seja eterno, tudo que cuidamos dura
mais. Deito na cama e penso em você. Dói, dói, dói, até não poder mais. Acabo
dormindo, acordo, e, no outro dia, ainda continuo sem você.
Você ficou tão longe que
te perdi de vista. Deixaste-me tanto tempo só, que nosso elo se rompeu. A
conexão mental, a sintonia que possuíamos, não sobreviveu sem o contato físico.
E não é este tipo de relacionamento que desejo. Minha alma precisa estar
conectada para meu corpo se entregar. Não foi a convivência que temíamos antes
da quarentena, sequer o vírus mortal que acabou conosco. A liquidez de nosso
amor é que não resistiu a quarentena.
Perdemos-nos pelo tanto faz, pela inércia, pela indiferença, pela falta
de cuidado, pela desatenção, pelo cansaço, pelo sono, pelo desamor, e,
sobretudo, pela não reciprocidade.
Agora já não sinto tanto
tua falta. O que me dói são as lembranças do que fomos, a saudade do que
vivemos e sentimos e tudo de belo que ainda poderíamos ter feito juntos. Sou eu
quem me falto agora, não tu. Falto-me porque me dei demais. É o meu pedaço que
ficou em ti que preciso resgatar. Mas estes próximos dias de isolamento vão me
ajudar, serão o meu luto emocional. Prefiro estar sozinha sozinha que sozinha
acompanhada.
Há decisões que quebram o
coração, mas consertam a alma. Não sou uma mulher frágil, mas quando quebro,
corto. Desta vez quebrou, e sem
conserto. Estou te cortando da minha vida.
Eras o meu mundo, agora vou me permitir conhecer outros planetas. E
daqui pra frente, pra alguém ficar do meu lado, terá que ser melhor que a minha
companhia. Mais importante que isso, aprendi nesta quarentena que pra ficar ao
meu lado, não precisa estar ao meu lado, mas precisa estar comigo.
Uns chegam, outros vão.
Nossa vida é com aqueles que ficam. Foi ótimo enquanto durou. Vou me amar, e
não volto mais. Espero que consigas ser feliz. Eu também...mas com outra
pessoa.
*Dr. Ildo Meyer
Médico. Escritor.
Palestrante. Filósofo Clínico.
Porto Alegre/RS
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