Nas páginas a seguir, você terá alguns apontamentos e
reflexões sobre a abordagem terapêutica da Filosofia Clínica. Uma introdução ao
estudo da linguagem fora de si, seus desdobramentos, repercussões, impacto na
vida das pessoas. A maioria calada, antes mesmo de articular sua singularidade
em estado nascente. São esboços redigidos no intervalo dos atendimentos e
viagens, distribuídos em pequenos textos. Tentam realizar uma aproximação
descritiva entre o fazer clínico do Filósofo e a trama contida nos discursos de
incompletude, desestruturação, equivocidades.
São escritos com base nas intervenções clínicas dos últimos
anos. Muitas delas com ações clandestinas em bairros e vilas de periferia,
morros, vias marginais, hospícios desmerecidos. Busca transcrever percepções,
compartilhar aprendizagens, descrever recantos do fenômeno humano. Se a obra
puder instigar pesquisas, motivar mais ações de atenção e cuidado aos excluídos,
sua partilha terá sido válida.
Compreender o fenômeno da desestruturação existencial, não
como uma forma de loucura, mas um ritual de passagem, impregnado de imagens
embaçadas, linguagens desconhecidas, é um dos desafios dessa abordagem. A conversação
com essa força incomum, impregnada de simbologia, procura embalar os
deslocamentos como um exercício de obra aberta.
Assim os jogos de linguagem da pessoa internada, passam a
ter lugar de destaque. Uma singularidade em vias de tornar-se. Nesse sentido a
clínica do Filósofo, em seus pressupostos metodológicos, se vê ampliada. A
partir de então, passa a ser reconhecida como uma extraordinária aliada, capaz
de acolher e cuidar desses momentos de crise aguda.
As inesperadas conjugações existenciais tem mostrado ser a
palavra mais que a palavra. Sua dissonância com o meio onde se encontra, a
partir dos indícios que apresenta, pode emancipá-la. Nesses momentos de deriva,
a atividade clínica encontra sua farmácia: o discurso em sua fase de desconstrução.
Uma abordagem aprendiz para saber onde e como tratar, quais os
medicamentos adequados ao contexto narrativo diante de si. Existe um convívio
compartilhado com esses cotidianos da vertigem. Instantes onde a distorção da
realidade consensual surge como ingrediente de ruptura, contradição, superação.
Nessa interseção com as pessoas em vias de não-ser, um novo
lugar se descreve, aponta suas verdades numa língua estrangeira. O movimento das
novas ideias, sensações, vislumbres, costuma ter um efeito avassalador, desconstituindo
o chão conhecido. Esse desassossego em vias de ser algo que ainda não é, é uma
das características desse processo de reinvenção pessoal.
Os manuscritos desses eventos convivem com a fugacidade das
suas dobras, nuances, rastros, os quais apreciam os desvãos da linguagem para
se insinuar. Contextos de uma expressividade fora do ar, a qual tenta dizer
algo mais, em sua limitada retórica existencial em vias de transgressão.
Um registro importante dessa busca pelo bem estar subjetivo,
é o fato de que, nesses ensaios de idas e vindas, muita gente fica pelo
caminho. Aqui não se trata de bem ou mal, certo ou errado, mas da melhor opção
encontrada, em determinado momento da vida da pessoa.
Razões para isso? Tantas quantas possam ser as histórias de
vida de cada um. Algumas: escassez de meios para buscar-se ou manter o
território recém conquistado, fraca estruturação pessoal, forte imposição e
controle do meio onde se encontra, um novo ingrediente de sedução e interesse
no meio do caminho. É importante lembrar as vulnerabilidades, impedimentos,
chantagens afetivas, barreiras culturais, econômicas, religiosas, a dificultar
o encontro das pessoas com seu melhor.
Uma língua estranha convida a percorrer essas zonas
desconhecidas. Ao terapeuta resta um convívio aprendiz com a avalanche das
novas menções. Nesse lugar onde as paredes tentam sufocar suas contradições, o
papel existencial cuidador significa a desmedida que a interseção permita
significar.
Nesse sentido, os escritos dessas páginas, atualizam algumas
reflexões sobre essa sedução irresistível pelo fantástico, por onde transitam
os absurdos devaneios de reinvenção. Compreender essa fonte de inquietude subversiva
pode ser um começo para transcrever o inexplorado território das indefinições.
As vivências do Filósofo Clínico com as dialéticas da
transição pode reivindicar sua presença, nos mais diferentes endereços
existenciais, refúgios aos dias de vertigem e desconstrução. Assim, os asilos
psiquiátricos, hospitais-dia, residências terapêuticas, clínicas de periferia,
se oferecem como um espaço, nem sempre adequado, ao processo de acolhimento e
tratamento das crises.
Seu transbordamento singular emancipa uma lógica dos
excluídos. Ao terapeuta cabe assumir, mesmo provisoriamente, o ponto de vista alheio.
Uma relação em vias de construção compartilhada com a estrutura mutante do novo
vocabulário. Nessa integração em perspectiva, pode ocorrer o resgate da
humanidade, até então, desconsiderada. É possível a leitura do caos pessoal
como um testemunho de nosso ser mais antigo.
A fonte de inspiração dessa obra são os atendimentos em
hospitais psiquiátricos, clínicas de periferia, associações comunitárias
esquecidas, morros, vilas, guetos, secretarias municipais de saúde mental. Seu
texto reivindica uma atenção à lógica delirante. Uma de suas propostas é
recuperar os inéditos momentos onde a crise fala, diz a que veio, comunicando
aquilo, até então, sufocado pelos princípios de verdade. Aí a desordem costuma
surgir como um fenômeno libertário.
Esses estudos da condição humana internada transcrevem uma
esteticidade dos movimentos bruscos. O sujeito, ao se encontrar perdido, em uma
língua estranha, palavras incompreensíveis, atitudes contraditórias, costuma
dissociar-se dos velhos endereços existenciais. Instantes de vislumbre das suas
margens resignificando-se de um si mesmo fora de si para ser outro.
Com a leitura clínica dos raciocínios desestruturados e incompletudes
discursivas, pode se realizar um acolhimento a essa condição de exílio subjetivo.
Elaborar um espaço de experimentação aos projetos ainda sem nome. Acompanhar
cuidando e aprendendo com as novas páginas do partilhante. Qualificar as
leituras e releituras desse labirinto a se mostrar com linguagem própria.
Ao olhar dos princípios de verdade (sociedade), um discurso
assim descrito, pode soar como ameaça, confusão, loucura. A atividade clínica
do Filósofo se inicia nesse ponto da desestruturação pessoal, onde um sujeito reivindica,
de um jeito próprio, atenção e cuidado aos seus deslocamentos de travessia. Uma
subjetividade mutante convida a visitar seus rascunhos. Sua proposta é
compartilhar a estrutura em vias de ser inédita. Um acolhimento ao vislumbre
dos novos horizontes. Talvez ponto de partida para a reescrita desses dialetos em
uma nova conjugação existencial.
*Hélio Strassburger in Prefácio "A palavra fora de si - Anotações de Filosofia Clínica e Linguagem". Ed. Multifoco. RJ. 2017.
**Filósofo Clínico não filiado a ANFIC
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