“Antes eu era transparente, agora sou cheio de cores”
Arthur
Bispo do Rosário
A inédita conversação
nos recantos da palavra delirante possui característica de anúncio. Sua
perspectiva de grande abertura oferece derivações a insinuar vontades e
perseguir refúgios existenciais. Uma filosofia dos devaneios sugere novas
menções.
O hospício cotidiano,
esse lugar legitimado por força de lei, atualiza seu discurso em paradoxos com
olhares desfocados. Enquanto a enfermaria multiplica a fenomenologia dos
delírios, o lugar reinventa a camisa de força da normalidade e persegue os
poetas enlouquecidos pelo não dizer.
No caso da vírgula
contida nesses atalhos, dizeres desconsiderados prosseguem em rituais de
ilusão. Sua estrutura significante faz referência aos incríveis vislumbres,
numa palavraria sem sentido aos endereços já superados.
A condição de
miserabilidade física do sonhador medicado faz reverência à medicina dos
enganos. Essa como ciência da correção discursiva constrói seus muros e janelas
sem vista, para proteger a aldeia lá fora. No entanto, o que são portas e
grades ao viajante que aprendeu a bater asas e conheceu a arte de ultrapassar
paredes ?
Ao sujeito assim
disposto, a vida ensaia outros jeitos de existir. Propõe o curso invisível da
resistência solitária. Sua estrutura de lógica desconhecida possui totens bem
protegidos da intervenção alienista. Esse ritual aprecia compartilhar esboços e
invenções nas lógicas do delírio.
Clarice Lispector
compartilha: “Eu, alquimista de mim mesmo. Sou homem que se devora ? Não, é que
vivo em eterna mutação, com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego
ao fim de cada um dos modos de existir. Vivo de esboços não acabados e
vacilantes. Mas equilibro-me como posso entre mim e eu, entre mim e os homens,
entre mim e o Deus” (Lispector, 1999, p.86).
Em si o lugar das
ventanias se encontra com o lugar das promessas insatisfeitas. É improvável ser
alguma reminiscência portadora de verdades, pois sua maquiagem, aspecto de
borrão, oferece expressividades na velocidade incrível dos desatinos. Espécie
de refém da normalidade a perambular pelos corredores da cidade. Os loucos por
liberdade possuem sobrevida na caminhada pelos labirintos de si mesmos.
Nesse lugar as
geografias modificam suas fronteiras com velocidade inacreditável. Um
território onde a linguagem pode ser cúmplice ou adversária para se entender
melhor. Na interseção com o logos desconhecido os parágrafos fazem referência
ao fora de foco e seu aspecto de não ser.
Evidencia as brechas da
ciência normal, possivelmente rascunhos sobre novidades impossíveis à ótica
anterior.
Ao não referir coisa
com coisa uma quase explicação se oferece. Percepção vadia a desvelar óticas
desconsideradas. Suas circunstâncias sugerem novas legendas que aguardam, num
tempo sem pressa, o olhar das irregularidades criativas. Na voz dissonante do êxtase
precursor, um apelo tenta descrever seus originais no suplemento imprevisível
dos discursos.
Philippe Willemart diz
assim: “Todas as palavras, expressões, cores e formas, sons e melodias estão
lá, bastaria acaricia-los para atraí-los e fazer com que emerjam (...). A obra
está nascendo, mas as palavras ainda faltam” (Willemart, 2009, p. 175).
Nos escritos do agora
cadáver desliza um projeto marginal em sobras, desvios e demais incompletudes.
Com a metamorfose significante de cada um, a poesia singular acontece em várias
direções. Um projeto de paixão dominante deixa rastros na mensagem
descontinuada a sustentar eventos. Ao perseguir novidades se reencontra com o velho
álbum entreaberto.
Na multidão das
promessas não cumpridas, se insinuam outras versões. Por esses intervalos sem
fronteira uma fonte atualiza a arte de cuidar jardins. O evento peregrino
oferece preenchimentos aos vãos desmerecidos.
A lógica dos excessos
contém rumores de alargar limites e desconstruir estereótipos de perfeição.
Suas evidências articulam blefes desconstrutivos de longo alcance. Essas
poéticas restariam intocadas, não fora a encenação subversiva a transgredir
certezas. O mundo da terapia inclui o saber de que as raridades. Muitas vezes,
só possuem nitidez quando vistas de longe.
Semelhante às ventanias
em ânimos de revolta, a perspectiva desconsiderada se movimenta noutras
direções. Incríveis as pessoas capazes de autogenia no curso de uma só ideia,
antes de concluí-la já é outra. Uma epistemologia difusa se realiza na
interseção entre ordem e caos. Nesses caos, talvez o discurso filosófico
consiga trazer das lonjuras reflexivas a linguagem simples das coisas
profundas.
Em Autran Dourado: “O
bom do meu mestre imaginário era que ele não tinha idade. Era mutável como o
vento (...). Contraditório e mesmo absurdo, Erasmo Rangel não tinha a virtude
pequeno-burguesa de querer ter sempre razão, ser definitivo, consequente. ‘Graças
a Deus’, dizia ele, ‘choco-me comigo mesmo, não sou sempre o mesmo’” (Dourado,
2005, p. 9).
Texto demarcado pelo
contexto infrator e inacreditável, em que as vírgulas são cúmplices de algo por
dizer. Mesmo assim, na multidão do instante, é possível ouvir o silêncio a
insinuar desfechos. Ao terapeuta-artesão cabe esculpir sua obra numa interseção
compreensiva, lado a lado com o outro em busca de melhores dias.
Na pessoa plural, a
menção dos termos agendados aponta em múltiplas direções interpretativas. Assim
como o leitor interfere no texto com sua leitura, o clínico não sai ileso na
relação com o sujeito sob seus cuidados. A atividade do filósofo clínico também
refere uma elucidação para desenvolver autonomias.
Ao sabor incerto das
inéditas regiões, um personagem é capaz de múltiplos papéis. Mais que alimentar
convicções sustenta dúvidas, especulações, sugere procuras. Nesse sentido,
importa mais ultrapassar a primeira vista, em que nada se via, para voltar e
superar a sensação de estrangeiro diante do próprio olhar.
O sonho do poeta
internado se embala na embriaguez vertiginosa das miragens. A arte de pensar
sem tipologias encontra aliados na descontinuidade dos ímpetos narrativos. A
eficácia da descrição substitutiva está em ampliar o teor do discurso original.
Nele se reinventa a desrazão em poéticas do amanhã.
*Hélio Strassburger in “Pérolas
Imperfeitas – Apontamentos sobre as lógicas do improvável”. Ed.
Sulina. Porto Alegre/RS. 2012.
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