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Discursos de transgressão*


                                              
“Nascer com o mundo sem passar pelas palavras, eis efetivamente o que parece estar em jogo em todas as práticas tribais e em seus excessos”
                                                           Michel Maffesoli

A pluralidade subjetiva internada em uma só pessoa aprecia o caos para ensaiar releituras existenciais. Mesmo quando inadequado à estrutura dos vislumbres, segue a desvendar instantes em busca de algo para chamar de seu.

Os paradoxos de transgressão apreciam a desleitura dos contextos que vão surgindo. Interrogar contraditório de longo alcance na interseção com a família e amigos. A distorção pode fazer transbordar, na superação dos medos e inseguranças um convívio novo com sua tribo.

Ao desmerecer as regras do jogo cultural onde se encontra, atrai para si não apenas desconforto e críticas, mas reações de contrariedade e incompreensão. Em meio a isso tudo, a pessoa busca algum ponto de apoio para entender os indizíveis desatinos.

Nas palavras de Foucault: “A que acontecimento ou a que lei obedece essas mutações que fazem com que de súbito as coisas não sejam mais percebidas, descritas, enunciadas, caracterizadas, classificadas e sabidas do mesmo modo e que, no interstício das palavras ou sob sua transparência, não sejam mais as riquezas, os seres vivos, o discurso que se oferecem ao saber, mas seres radicalmente diferentes ?”  

Ao sujeito em processo desconstrutivo, se apresenta um ponto de conforto distanciado daquilo até então conhecido. Na antítese veiculada pelas crises, a possibilidade de tradução permanece incógnita, devido à linguagem irreconhecível nos ensaios. É comum procedimentos para restaurar esse estranho ao antes de sua loucura. Essa nova condição, embora pareça surgir de uma hora para outra, se desorganiza ao longo do tempo. A visibilidade distorcida acentua testemunhos de não ter mais jeito.

A desrazão se afirma em contrastes com a zona restrita da normalidade. As abordagens terapêuticas da tradição normal legitimam suas práticas no desrespeito ao sujeito em processo de ressignificação existencial. Estruturam verdades, rituais de contenção e legalizam tratamentos na presunção de sanar desvios. Nesse sentido, a conversação com as estrelas, os planetas ou a diversidade dos personagens, pode ter muito mais a dizer sobre o intraduzível da alma humana.

A ousadia de realizar reciprocidade com a subjetividade delirante pode auxiliar na descrição desses protagonistas da desordem. Ressonâncias de tumulto onde a pessoa experimenta indicativos de descoberta. O devaneio irrefletido, a multidão dos papéis existenciais e os achados dessa conversação multifacetada podem agravar distâncias ao deciframento pessoal.  

Para acessar a natureza das reviravoltas é impreciso aprender com as lógicas do extraordinário. Na versão desembaraçada de si mesma, luz e sombra se alternam em feições de exagero. Ao filosofar de Heidegger: “O que, portanto, deve manter-se impronunciado resguarda-se no não dito, abriga-se no velado como o que não se deixa mostrar, é mistério”.

Uma epistemologia se exercita entremeios de ser impensável. Costuma encenar excessos na fantasia de seus contrários. Trajetória de exceção entre antes e depois das mensagens animadas pelos caos. A loucura aprecia os vislumbres de premonição para depois de amanhã. No entanto, as tentativas de desqualificar sua versão devem parecer legítimas. Assim sendo, seu fenômeno pode ser investigado ao extrapolar consensos e racionalidades. Ao desvirtuar, transgredir e afrontar as lógicas do bom-senso encontra-se com uma perspectiva aberta e inconclusa.

O hospício é um desses lugares onde o sujeito experimenta outros nortes a sua humanidade. Embora a vontade possa surgir desordenada, é possível entrever, em seu aparente sem rumo, vestígios de complexidade.

O contar reflexivo do escritor Lima Barreto, internado no hospício nacional, na Praia Vermelha, em 1919, assim refere: “(...) eu me esqueci de mim mesmo. Adquiri um grande desprezo pela opinião pública, não tenho mais esperança de riqueza ou posição: o meu pensamento é para a humanidade toda, para a miséria, para os que sofrem, e para os que todos amaldiçoam”

Quando isso acontece, é comum o refúgio em algum ponto distante da superfície. Nesse sentido, é possível compreender a condição eremita, na qual se revela a singularidade mutante. Um fluxo de ideias de aparente desordem encontra um refúgio sagrado na distância das subjetividades.

O estado de espírito alterado ou a confusão mental pode ser prefácio às mudanças pessoais. Lucidez absurda no devir da loucura. Ao ser distorção no visar da normalidade e na impossibilidade de realizar significações adequadas, a lógica dos excessos pode descobrir outras verdades.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Diálogos com a lógica dos excessos”. Ed. E-Papers/RJ. 2009.

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