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Artesão da palavra***


"Grafar é insubordinar-se contra o código, é procurar dizer o que ainda não se sabe dizer (...) é inventar uma nova solução para o que se declarou não resolvido"
                                                     Donaldo Schuler

Ao querer dizer dos manuscritos, muitos conteúdos ficam sem tradução adequada. Na pluralidade dos espaços vazios se entrevistam outros enredos. No esboço das coreografias, a linguagem faz referência aos inéditos de si mesma.

Não basta pensar os pressupostos para decifrar os ânimos da comunicação. Um pouco antes de ser entendida, fica a zanzar entrelinhas de si, como um querer dizer sem nexo. Uma leitura desatenta pode deixar o texto intocado, sem perceber o 'logos' significativo a esparramar vestígios.

A natureza se mostra insuficiente a uma só versão. Para apreender os sentidos sob os disfarces, é impreciso descrever fatos e intenções só com base na literalidade. A partir da interrogação especulativa, a se renovar em páginas de um cotidiano recém-transcrito, o silêncio anterior pode delinear o movimento de alma por onde passa. O caos transformador se realiza na insubmissão com aquilo conhecido. 

Esse roteiro de prefácio inacabado sugere andanças e experimentações pelo mundo das ideias. Seu viés de lógica insensata possui autoria e significado próprio. Através da simbologia retórica, o traço dessas propedêuticas anuncia uma condição singular.  

O apelo contido na frase calada refere pronúncias de saber incrível. Apontamentos por onde rumores irão tentar descrever inéditos depoimentos. A sucessão vertiginosa das propensões aprecia o refúgio nalguma forma de contradição. A alquimia desses dialetos nem sempre pode ser descrita pelo vocabulário conhecido. Talvez o texto descartado lhe conceda vida nova, ao localizar o ponto onde a crença se institui em cultura. 

As arquiteturas da subjetividade possuem referencial mutante. Muitas vezes apontam uma condição estrangeira nas assertivas de não ser nada. Seu teor difuso concede caráter de abertura aos discursos impronunciados.

O Filósofo Clínico busca compreender a origem e os contextos das mensagens. Momentos em que muita coisa pode ficar indeterminada, se distanciada da sua matriz estrutural. Ao operário da palavra restam a companhia da solidão investigativa, o saber errante das reflexões e a poética da estrada.

A sintonia entre o pensar e o dizer rascunha amanhãs. A escritura desses rasgos extraordinários se relaciona com fenômenos ultrapassados e por vir. Aqui não se trata de saber a melhor expressão, mas em que medida texto e contexto possuem equivalência nas tramas precursoras da crise.

O pensamento costuma se mostrar pela representação, ao refletir múltiplas narrativas, concede releituras e deixa de ser estória mal contada. A vida parece preferir um cenário de enigmas, ao redesenhar a fonte de onde tudo partiu. As vozes inquietas e em desacordo com o mundo normal fazem soar um viés subterrâneo.   

Tentativas de ver os invisíveis recantos a silenciar fora de foco. Um esboço aponta dialéticas órfãs de direção. A começar na introspecção nômade, seus protagonistas rascunham pretextos de alternância entre sonho e realidade. 

O rumor dessas línguas estranhas engendra matérias-primas precursoras. Os conteúdos de novidade aparecem como desconcerto ao olhar tipológico. A referência aos gestos sutis desvela mensagens na dinâmica do traço. Aprecia descrever outras verdades ao viés de exceção do leitor diferenciado. 

Com auxílio da voz, silêncio ou papel e tinta, os rascunhos descrevem suas fontes de influência. Hipérboles, metáforas ou sujeitos ocultos podem querer dizer o indizível. Assim o autor vai esculpindo sua semiose com a sensação do termo recém-chegado.

Pressente uma arte dialética ao vislumbrar horizontes. Descobre algo novo na invenção de cada página, por onde as reticências insinuam suas retóricas e o gesto procura a língua mais adequada para se expressar. Sua preferência inclui aquilo ainda sem rosto ou forma para se dizer.

O traço acentuado pela intencionalidade transborda em versões a perder de vista. Uma eloquência em arremedos de coisa nenhuma. A pluralidade dos exílios possui feições contraditórias com os princípios de verdade. Na derivação das inquietudes o artífice da palavra também se faz profeta do extraordinário, quase sempre por acreditar naquilo que outros deixaram de lado.

Ao olhar do poeta tudo se faz poesia. As lógicas da distância e da proximidade se encontram na multidão indizível. nem sempre em busca de tradução. Sua interrogação destitui certezas e faz referência a outros rumos. Na percepção cristalizada pela razão, essa espécie de alusão, em seu caráter visionário, tenta mencionar o excesso presente num talvez.

À introspecção dos relatos admiráveis restaria impronunciada, não fosse a decifração dos seus contornos. As miradas por esses esconderijos da subjetividade associam pretéritas combinações ao feitiço de viver. Ao se encontrar em uma estranha harmonia, as crônicas do delírio revelam o milagre do sentido. 

Uma perspectiva do instante se oferece na conjugação multifacetada, em que autor e leitor se encontram. Sua desleitura ressoa a proliferar clarividências. Nessa arquitetura de contrastes o curso aprendiz retoma algo que parecia perdido: o aceno fugaz de um nada corrompido. 


*Hélio Strassburger in "Pérolas Imperfeitas - Apontamentos sobre as lógicas do improvável". Ed. Sulina. Porto Alegre/RS. 2012. 

**O autor trabalha há 40 anos com instituições de periferia, marginais, como: aulas e atendimentos em morros, asilos, hospitais gerais e psiquiátricos, associações comunitárias, dentre outros espaços, nas cidades onde tem residido, levando a mensagem de uma Filosofia Clínica libertária.   

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