A história nos mostra que
todos os momentos de crise profunda são, dialeticamente, também momentos de
grande reinvenção.
O que precisamos aprender
com estes tempos de coronavírus?
E mais importante: o que
precisamos desaprender?
* * *
Converso com alguns
amigos que, em suas casas, têm tido dificuldade de conviver com os seus
parceiros de vida e com os seus filhos.
Alguns desses amigos já
perceberam que o problema não está nos membros da família, mas em si mesmos.
Eles não conseguem lidar é com a sua própria presença incômoda.
Acostumados à rotina de
trabalho durante a semana e a atividades e passeios nos fins-de-semana, não
perceberam que, aos poucos, a sua identidade pessoal se confundiu com a sua
personalidade social e profissional.
Eles não mais sabem ser
simplesmente eles mesmos, não mais conseguem lidar suave e graciosamente com os
problemas e com as frustrações simples da vida: o parceiro que reclama da louça
suja, a criança inquieta que faz birra, a insegurança de todos diante do
futuro.
Talvez seja preciso
desaprender a sustentar, todo o tempo, a personalidade do profissional
competente e focado. Talvez seja preciso voltar a vivenciar a leveza e a graça
dos problemas comuns, talvez seja necessário desaprender a gravidade das coisas
e reaprender a rir de si mesmo. Não é essa a maravilhosa lição do último
diálogo de Mozart com Harry em "O Lobo da Estepe"?
* * *
Conheço quem, diante do
ócio, descobre-se entediado - e por isso encontra mil maneiras de se distrair:
redes sociais, livros, filmes, arrumação da casa.
Schopenhauer afirma que o
tédio é simplesmente a consciência do vazio da nossa existência. Nessa mesma
linha, Pascal diz que buscamos constantemente um passatempo - no jogo, nas
festas e na internet - porque não suportaríamos pensar na miséria da nossa
vida. Deixe-se um rei sem diversão, sem satisfação dos sentidos, sem companhia,
e ver-se-á um rei miserável.
Contudo, amigos, o tédio,
fruto do ócio, em lugar de causa de sofrimento, pode ser um grande presente. A
descoberta da nossa pequenez, a consciência da nossa situação miserável no
mundo, tem uma potência pedagógica profunda: reconhecendo que não somos nada,
podemos finalmente descobrir o nosso real valor, o real e imenso valor da nossa
consciência.
E o ócio pode, sobretudo,
vir a se tornar instrumento da criação. Não é à toa que Aristóteles preconiza o
ócio como condição para a vida política. É justamente no momento do ócio que
não somente podemos criar - poesia, música, arte -, mas também pensar sobre nós
e sobre o mundo com a necessária lentidão e tranqüilidade. Talvez seja
necessário desaprendermos a preencher cada momento da vida com trabalho ou
diversão para que possamos redescobrir o poder criativo do ócio e o valor moral
do tédio.
* * *
Finalmente, amigos, lemos
notícias de que a água e o ar das cidades em quarentena de algum modo voltam à
vida: os canais de Veneza, livres dos turistas, estão límpidos e cheios de
peixes; o ar das cidades industriais na China é novamente respirável; a poluição
diminui sensivelmente em muitos lugares do planeta.
Talvez esse seja um
benefício inesperado da crise, um benefício que nos leva a cogitar a
viabilidade de uma desindustrialização, de um decrescimento econômico
planejado.
Amigos, já se sabe há
algumas décadas que o desenvolvimento econômico incessante é incompatível com a
sustentabilidade ambiental e, em algum momento do futuro, dificultará a própria
permanência da vida humana na Terra. Concordo com Hans Jonas: a nossa
irresponsabilidade produtivista e consumista é semelhante à loucura de uma
família que endivida terrivelmente as próximas gerações para viver agora na
opulência. É preciso parar com essa irresponsável destruição do mundo: é
preciso cuidar do mundo dos nossos netos.
* * *
Talvez, amigos,
estejamos, neste momento, diante de uma oportunidade histórica extraordinária:
a oportunidade de refletir e agir para que os aprendizados e desaprendizados
necessários nesta situação não sejam ignorados, mas que constituam o início de
uma nova maneira de vivermos no mundo. Depende de nós sairmos menores ou
maiores desta crise.
*Prof. Dr. Gustavo Bertoche
Filósofo. Escritor. Musicista. Filósofo Clínico.
Teresópolis/RJ
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