Um novo paradigma deverá
conter, necessariamente, contradições com aquilo que busca superar. A nova
abordagem, ao emancipar práticas de cuidado e atenção à vida, também redesenha
o mapa das problemáticas existenciais. É o caso da Filosofia Clínica, a qual,
se fossemos pensar numa história das terapias, seria um capítulo pós
Psicanálise.
Ao contrário do que
afirmam alguns próceres do saber instituído, praticado como uma forma
hegemônica de entendimento da questão humana, a Filosofia Clínica desvincula o
fenômeno da singularidade das amarras da tipologia, da verdade dos
psicofármacos, cuja mordaça limita e condiciona sua expressividade, submetendo
seu devir existencial a lógica dos manuais (DSM’s).
Uma das questões
essenciais a crítica desses métodos da classificação, é o fato de sua
interpretação do fenômeno humano acontecer à distância de onde eles ocorrem, ou
seja, o sujeito singular compreendido em sua originalidade, se expressando em
linguagem própria.
Em Filosofia Clínica as
pessoas não tem rótulos ou etiquetas. Possuem uma autonomia narrativa, onde
experienciam escolhas, deslocamentos inéditos para qualificar seus dias. As
nuanças apontadas pela lógica das diferenças, aqui se traduzem numa via de
acesso ao devir Partilhante. Seu fundamento preliminar é um princípio de não
saber socrático, de onde acolhe aquilo que se apresenta, como matéria-prima na
qual irá trabalhar.
Nessa concepção de
terapia, se inaugura um horizonte de coexistência entre o Filósofo e a pessoa
sob seus cuidados. Aqui se destaca um aspecto essencial ao fazer terapêutico: a
capacidade de adaptação a diversidade expressiva do Partilhante, evidenciando o
caráter excepcional das interseções clínicas.
Sua estética diferenciada
possui uma dessemelhança com o fenômeno de multidão, próprio das práticas e
consensos da tradição, as quais, ocupadas em reescrever seus manuais, prefixar
regras e diretrizes de manutenção, cristalizam as formas do possível,
direcionam linhas de pesquisa, submetem jovens talentos, amordaçam as buscas
pela novidade. Fazem ciência normal (Thomas Kuhn).
A Filosofia Clínica, ao
ser superação e desenvolvimento libertário, oferece vida nova ao conjugar
possibilidades com seu Partilhante. Nesse sentido, as críticas da escola
tradicional são muito bem vindas, contribuindo para legitimar o novo paradigma.
Não permitem que o novo modelo se transforme em mais uma igrejinha da moda, com
seu espírito de rebanho, sindicatos, associações, imitando o que já
existe.
Ao Filósofo, para acessar
o estranho diante de si, não basta ter a mesma visão, deverá enxergar com ela
mesma sendo outras. Nesse sentido, a noção de interseção constitui uma
alquimia, onde se mescla a perspectiva de dois sujeitos, permitindo descrever
as estações que a alma percorre ao redesenhar seus caminhos.
Assim, um saber errante
pode se traduzir como desatino ou promessa. A natureza plástica desses
atendimentos se adapta a um cotidiano em vias de não-ser, por onde se destaca a
redução fenomenológica e uma hermenêutica compreensiva, em busca de traduzir
essas poéticas da singularidade. Com a referência teórica: fenomenologia,
estruturalismo, analítica da linguagem, se elabora um chão para o Filósofo
qualificar sua atividade cuidadora. O fundamento prático se faz na dinâmica dos
atendimentos, por onde observa, investiga, combina, multiplica, as hipóteses
existenciais, de acordo com o horizonte do Partilhante.
Tendo como referência um
caráter de transbordamento existencial, por onde a representação de cada
sujeito tende a estruturar sua condição, essa nova abordagem acolhe o
extraordinário, o peculiar, o fora de si, contido em cada relação, desvelando
um inusitado si mesmo se modificando.
Uma competência da boa
terapia reside na percepção do Filósofo de que os ajustes na estrutura de
pensamento sob seus cuidados, deve se adaptar ao curso de sua intencionalidade,
respeitando os limites da interseção e o horizonte de possibilidades do Partilhante.
A noção de incompletude
existencial se utiliza da impermanência do cotidiano para atualizar seu
discurso. A palavra capaz de acessar um bem estar pode ser a mesma da estrutura
de pensamento, muitas vezes utilizada numa direção contrária ao que se quer. A
leitura dessas perplexidades ainda sem nome, redigidas pela via compartilhada,
se desdobra ao abrigo da relação cuidadora, onde o sujeito se exercita em busca
de melhores dias.
Em sua autobiografia o
Partilhante renova os conteúdos da memória. Essa revisita a historicidade lhe
oferece, dentre outras coisas, um reencontro consigo mesmo. Essa reconstrução
do seu passado, ainda quando parcial, lhe permite respirar novos ares. A ideia
de uma estrutura de pensamento, torna visível a geografia interna da pessoa,
onde se registram e desenvolvem seus dias, concedendo um espaço de atuação ao
Filósofo. O suporte para essas intervenções são os Submodos, via de regra,
oferecidos pela categoria circunstância.
Nesse sentido, a
hora-sessão revela momentos onde eu e tu elaboram a palavra nova capaz de
acessar estéticas para rascunhar sonhos. A movimentação subjetiva por esse
relicário, via construção compartilhada, evidencia aquilo que já se encontrava
na perspectiva Partilhante. A conjugação de pontos de vista, suas versões
subjuntivas, elaboram propósitos ao desenvolvimento da terapia.
Assim a Filosofia Clínica
- ensinada e praticada na Casa da Filosofia Clínica - atua como uma fonte de
inspiração aos ensaios de cada um. Testemunha uma fenomenologia dos renascimentos.
Se assemelha a uma ilha navegando pelas contradições cotidianas, onde as
pessoas se reencontram consigo mesmas, para, novamente, se lançar em mar
aberto.
*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico na Casa
da Filosofia Clínica
**Não filiado a Anfic
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