Num momento de crise, como a situação de pandemia em que vivemos, muitos desejam uma orientação a respeito de como devem agir, mas não sabem em que confiar
Nesse contexto, leio aqui e ali pessoas inteligentes nos exortando a "seguir a ciência". Desculpem, amigos, mas eu não sigo o que eu não sei o que é.
Nesse contexto, leio aqui e ali pessoas inteligentes nos exortando a "seguir a ciência". Desculpem, amigos, mas eu não sigo o que eu não sei o que é.
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Foi o Rubem Alves que, no
seu livro "Filosofia da Ciência", escreveu que "o cientista
virou um mito" e que "todo mito é perigoso". De fato: a idéia de
uma ciência objetivamente desinteressada, imune à política e ao mercado, é
mitológica. O ethos científico - que, como descrito por Merton, corresponde aos
valores do universalismo, da coletividade, do desinteresse e do ceticismo
organizado - é uma meta mais ou menos inatingível. É imensa a bibliografia
sobre a utilização das estruturas e pesquisas acadêmicas com a finalidade da
obtenção de vantagens para empresas e para agentes políticos. "Confiar na
ciência" corresponde, com muita freqüência, a confiar simplesmente no
interesse econômico empresarial e no interesse ideológico de movimentos
políticos.
É também mitológica a
idéia de uma ciência unitária e uniforme. O tipo de existência da ciência não é
como o de um partido político, em que se pode apontar inequivocamente qual é a
sua posição oficial, qual é o seu presidente, quais são as suas teses
orientadoras. A ciência existe como um conceito abstrato relativamente
indeterminado - como são os conceitos de "Ocidente", de
"religião", de "povo" - que se ramifica em muitas regiões
simbólicas.
Como mostraram Bachelard,
Kuhn, Feyerabend e muitos outros depois deles, a idéia de uma posição unitária
da ciência sobre qualquer assunto não passa de uma idealização, de uma
sinédoque, de uma personificação. "A ciência" não afirma nada;
"a ciência" não sustenta posição nenhuma. Quem afirma, quem sustenta
as suas posições, são "os cientistas". E eles não afirmam nada em
uníssono, eles não pensam em bloco: não existe unanimidade em campo algum da
ciência. Em todos os ramos da investigação científica - na física, na biologia,
na sociologia, na psiquiatria, na economia, na climatologia, na
epidemiologia... - há os cientistas que adotam a posição padrão naquela época e
naquele lugar, e há os que nadam contra a corrente. Quando tomamos a voz de um
cientista como a voz da própria ciência, simplesmente adentramos o domínio
poético do pensamento metonímico: tomamos uma voz concreta e particular como se
fosse a posição de todos os cientistas de todas as regiões científicas. Amigos,
nada nos impede de usar figuras de linguagem - desde que não as tomemos como
expressões diretas do real, e desde que elas não nos sirvam de orientadoras das
ações políticas concretas.
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Há uma grande disparidade
entre as posições dos cientistas porque, como Popper mostrou, a ciência é
incapaz de provar qualquer coisa: uma teoria científica não é uma descrição
exata da realidade, mas uma hipótese a ser testada, aperfeiçoada e,
eventualmente, abandonada. O trabalho do cientista não é o de
"confirmar" uma teoria, mas o de tentar derrubá-la. Em outras
palavras: a ciência não nos oferece "a verdade", mas descrições mais
ou menos provisórias que funcionam até certo ponto e que nos permitem operar,
de algum modo, no mundo.
De fato, é na
incompletude, na mobilidade, no criticismo da atividade científica que reside o
seu valor. Se um cientista se torna um dogmático, então já abandonou o campo da
ciência e adentrou o campo da ideologia.
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Amigos, como isto aqui é
o Facebook, neste momento devo interromper brevemente a argumentação: é certo
que alguém está a ponto de digitar, nos comentários, a acusação de
"terraplanista". Eu já comentei, numa postagem mais ou menos recente
(23/02/20), que nunca houve terraplanismo nem entre os cientistas, nem entre os
filósofos, nem entre os teólogos; como mostra Jeffrey Butron Russel em
"Inventing the Flat Earth", a concepção de que os medievais
acreditavam na "Terra plana" não passou de uma "fake news"
divulgada por intelectuais cientificistas no século XIX com a finalidade de
ridicularizar a religião. Ninguém pode levar a idéia da "Terra plana"
a sério, nem achar que o outro é, sinceramente, um terraplanista. Tenho
certeza: todo terraplanista só pode ser um gozador, um trolador, exatamente
como aqueles que seguem a religião "maradonista" na Argentina.
No fundo, o que alguém
quer dizer quando acusa o outro de terraplanista é que o outro é um opositor da
pesquisa científica. Não é o meu caso. Não somente não me oponho ao trabalho
dos cientistas, como o defendo e o julgo fundamental para a sociedade e para a
humanidade. Sustento inclusive que todos os governos deveriam investir boa
parte do seu orçamento na pesquisa e no ensino científico, sem nenhuma
obrigação do pesquisador para com resultados imediatos em função da economia ou
do bem-estar público.
Essa minha posição não é
contraditória com a constatação de que as ciências são perspassadas por
interesses econômicos e políticos; ora, esses interesses são inevitáveis, e
devem nos prevenir contra a confiança cega nas conclusões dos cientistas, mas
não podem nos levar a defender o cerceamento da sua liberdade de investigação.
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Amigos, eu não posso
"seguir o que diz a ciência" porque "o que diz a ciência"
simplesmente não existe. Existem cientistas e suas equipes, campos científicos,
escolas de pensamento, laboratórios e experimentos; existem debates, controvérsias,
fraudes; existem descobertas acidentais e existem construções
teórico-experimentais complexas e meticulosas. Mas não existe "a resposta
científica", simples e unívoca, para um problema real do mundo humano.
Por essa razão, quando me
recomendam que, diante da pandemia, é preciso "seguir o que diz a
ciência", eu fico sem saber o que me está sendo recomendado. De fato,
suspeito que esse pensamento prosopopéico signifique, afinal, "seguir uma
determinada ideologia" - e que o imperativo: "siga a ciência!"
não seja senão mais um slogan, vazio como todos são.
"Seguir a
ciência"? Obrigado, amigos, mas não estou pronto para acompanhar as suas
preferências ideológicas e os seus mitos: eu permaneço seguindo a minha razão -
que, a propósito, deve acidentalmente concordar com o que algum cientista, em
algum lugar no mundo, está sustentando neste exato momento.
E permaneço defendendo
que as decisões que afetam a toda a comunidade sejam tomadas pela própria
comunidade, após um debate amplo que inclua a palavra de muitos cientistas - um
debate em que a razão comunicativa nos aproxime do compromisso possível para
que, nos responsabilizando pelo nosso futuro, encontremos o caminho que nos
parece o mais adequado.
*Prof. Dr. Gustavo
Bertoche
Filósofo. Escritor.
Musicista. Filósofo Clínico. Livre Pensador.
Teresópolis/RJ
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