Amigos, Maquiavel é, com
alguma freqüência, considerado o primeiro cientista político moderno: nas suas
análises, ele teria sido um dos primeiros a rejeitar tanto uma concepção
metafísica da natureza humana quanto uma filosofia da história metafísica e sistemática.
O fiorentino teria procurado descobrir as leis da ação política no Estado em um
raciocínio indutivo a partir da própria narrativa da história.
Como suponho evidente, a
negação de qualquer metafísica é uma tarefa impossível; a crença de que não se
segue metafísica nenhuma é a metafísica mais tacanha.
Mas existe algo no método
da indução histórica que nos é útil: ela nos permite um certo grau de previsão
acerca da direção das idéias que impulsionam a marcha humana nos tempos.
* * *
Adorno e Horkheimer
mostraram, na Dialética do Esclarecimento, que os desenvolvimentos
tecno-científicos criados para nos libertar da miséria e da opressão acabaram
por criar um novo tipo de submissão: nós passamos a tomar a necessidade e a
inevitabilidade do avanço da ciência e da técnica como artigo de fé, e deles
nos tornamos não somente dependentes, mas também, de certo modo, servos.
Ordenamos toda a nossa vida – o trabalho, o lazer, o descanso, a família – em
função da manutenção da ordem da técnica.
Assim, o que nos torna
livres nos aprisiona; o que nos salva nos escraviza. Servidão recebe um novo
nome: liberdade; adequação agora é sinônimo de sucesso; consumo é felicidade.
Nos já estamos no
Admirável Mundo Novo descrito por Huxley. Já vivemos num novo mundo em que a
recusa crítica à razão totalitária e em que a defesa da autonomia racional do
sujeito são considerados sinais da desrazão.
Afinal, todos nós aprendemos
– por meio de uma indústria cultural que retroalimenta os valores da sociedade
tecno-científica – a desejar a tutela, a desejar a submissão, a ausência de
responsabilidade sobre a nossa própria vida e a nossa própria morte.
* * *
Por isso, amigos, não é
difícil supor que, diante das prováveis novas pandemias e emergências mundiais,
se aprofundem algumas tendências sociopolíticas que têm se manifestado.
Em nome da saúde e da
segurança pública, o governo da Coréia do Sul já monitora todos os cidadãos: por
meio de milhões de câmeras de vídeo nas ruas e do monitoramento dos aparelhos
celulares, o Estado sabe onde cada um está, para onde anda, com quem se
encontra. O governo chinês vai além: conhece também o que cada um faz nas redes
sociais e o que compartilha pelo seu e-mail; sabe mesmo a sua condição de
saúde, pois tem acesso aos smartwatches usados por parte dos jovens.
No Ocidente – e no Brasil
– já existem defensores da proposta de monitorar todos os cidadãos por meio dos
seus telefones. A justificativa é que, com esse controle, o Estado poderia
evitar as aglomerações que facilitam a disseminação da epidemia.
Uma sociedade na qual a
autoridade política pudesse conhecer toda a vida do indivíduo – os seus passos,
a saúde do seu corpo, as idéias talvez inaceitáveis ou criminosas que dissemina
na internet – decerto seria bastante segura. Nela, os sistemas de saúde pública
poderiam ser gerenciados com a maior eficiência possível; os crimes violentos
seriam virtualmente banidos, pois a sua autoria seria facilmente descoberta;
seria inexistente a expressão pública de racismo e de homofobia.
Sem dúvida, ficaríamos
tentados a trocar a inviolabilidade da nossa privacidade pela promessa de uma
vida com menos doenças, menos crimes e menos intolerância. O problema da
distopia retratada por Orwell em 1984 não é a permanente vigilância da
população, mas a falta do contraponto hedonístico. Huxley havia percebido,
antes de Orwell, que uma sociedade do controle precisa de uma dimensão de
escape. Um 1984 com redes sociais, música popular e liberdade sexual seria
perfeitamente tolerável, e mesmo desejável, por muitos.
* * *
Hobbes talvez tivesse
alguma razão. O homem comum está bastante disposto a abrir mão da sua
privacidade, da sua liberdade de ir e vir, da sua liberdade de pensamento em
benefício da segurança. Esse homem pensará: “não sou terrorista, homicida nem
racista; minha vida é trabalho e lazer; não tenho nada a perder diante do
controle governamental da minha existência”. Quem poderia reprová-lo?
É possível mesmo antever
que os que se opuserem a esse controle institucional da vida serão, na mídia e
nas redes sociais, considerados obscurantistas, teóricos da conspiração e até
criminosos. Quando chegar o momento, cada homicídio consumado será atribuído à
ignorância dos que se opõem à monitoração de tudo e de todos pelo Estado. Os
críticos de um projeto assim serão tratados como esquisitões, como loucos, como
terraplanistas, e enfim relegados à irrelevância por meio do processo de
silenciamento social que Noelle-Newmann chamou de “espiral do silêncio”.
* * *
Ao chegarmos no epítome
do controle estatal do cidadão, em certo sentido a nossa existência será mais
livre: uma sociedade sem crime e sem ódio evidentemente é uma sociedade em que
a vida pode ser vivida mais plenamente.
Mas, como tudo no mundo
humano, essa liberdade é dialética: quando ganhamos uma coisa, perdemos outra.
O que teremos perdido quando isso tudo acontecer? O que teremos perdido quando
a totalidade da nossa vida for institucionalizada?
Talvez percamos uma
faculdade sutil e invisível, uma faculdade que, em última instância, não se
pode medir senão indiretamente (como no experimento de Stanley Milgram): talvez
percamos a nossa autonomia.
O homem que perde a
responsabilidade sobre si mesmo, sobre a sua vida, sobre a vida dos outros, e
alegremente cede essa responsabilidade a outrem, se transforma numa criança.
Esse homem acreditará no que lhe for dito. Sob as palavras de ordem escolhidas
com cuidado, fará o que lhe for ordenado, oprimirá quem lhe for indicado. E, na
hora em que for escolhido para o sacrifício, marchará em direção à sua própria
aniquilação com o coração emocionado, transbordando de amor patriótico.
* * *
Amigos, a história do
nosso tempo indutivamente nos revela uma tendência: o fortalecimento das
instituições de controle da vida do homem. A feliz submissão a uma tirania
tecno-científica de natureza benigna, que garantirá a saúde e a segurança de
todos nós, parece mais ou menos inevitável. E quando isso acontecer, o homem
finalmente terá, em vida, a sua pax aeterna.
*Prof. Dr. Gustavo Bertoche
Filósofo. Escritor. Musicista. Filósofo Clínico. Livre Pensador.
Teresópolis/RJ
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