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Reflexões de um Pensador*



Amigos, Maquiavel é, com alguma freqüência, considerado o primeiro cientista político moderno: nas suas análises, ele teria sido um dos primeiros a rejeitar tanto uma concepção metafísica da natureza humana quanto uma filosofia da história metafísica e sistemática. O fiorentino teria procurado descobrir as leis da ação política no Estado em um raciocínio indutivo a partir da própria narrativa da história.

Como suponho evidente, a negação de qualquer metafísica é uma tarefa impossível; a crença de que não se segue metafísica nenhuma é a metafísica mais tacanha.

Mas existe algo no método da indução histórica que nos é útil: ela nos permite um certo grau de previsão acerca da direção das idéias que impulsionam a marcha humana nos tempos.

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Adorno e Horkheimer mostraram, na Dialética do Esclarecimento, que os desenvolvimentos tecno-científicos criados para nos libertar da miséria e da opressão acabaram por criar um novo tipo de submissão: nós passamos a tomar a necessidade e a inevitabilidade do avanço da ciência e da técnica como artigo de fé, e deles nos tornamos não somente dependentes, mas também, de certo modo, servos. Ordenamos toda a nossa vida – o trabalho, o lazer, o descanso, a família – em função da manutenção da ordem da técnica.

Assim, o que nos torna livres nos aprisiona; o que nos salva nos escraviza. Servidão recebe um novo nome: liberdade; adequação agora é sinônimo de sucesso; consumo é felicidade.

Nos já estamos no Admirável Mundo Novo descrito por Huxley. Já vivemos num novo mundo em que a recusa crítica à razão totalitária e em que a defesa da autonomia racional do sujeito são considerados sinais da desrazão.

Afinal, todos nós aprendemos – por meio de uma indústria cultural que retroalimenta os valores da sociedade tecno-científica – a desejar a tutela, a desejar a submissão, a ausência de responsabilidade sobre a nossa própria vida e a nossa própria morte.

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Por isso, amigos, não é difícil supor que, diante das prováveis novas pandemias e emergências mundiais, se aprofundem algumas tendências sociopolíticas que têm se manifestado.

Em nome da saúde e da segurança pública, o governo da Coréia do Sul já monitora todos os cidadãos: por meio de milhões de câmeras de vídeo nas ruas e do monitoramento dos aparelhos celulares, o Estado sabe onde cada um está, para onde anda, com quem se encontra. O governo chinês vai além: conhece também o que cada um faz nas redes sociais e o que compartilha pelo seu e-mail; sabe mesmo a sua condição de saúde, pois tem acesso aos smartwatches usados por parte dos jovens.

No Ocidente – e no Brasil – já existem defensores da proposta de monitorar todos os cidadãos por meio dos seus telefones. A justificativa é que, com esse controle, o Estado poderia evitar as aglomerações que facilitam a disseminação da epidemia.

Uma sociedade na qual a autoridade política pudesse conhecer toda a vida do indivíduo – os seus passos, a saúde do seu corpo, as idéias talvez inaceitáveis ou criminosas que dissemina na internet – decerto seria bastante segura. Nela, os sistemas de saúde pública poderiam ser gerenciados com a maior eficiência possível; os crimes violentos seriam virtualmente banidos, pois a sua autoria seria facilmente descoberta; seria inexistente a expressão pública de racismo e de homofobia.

Sem dúvida, ficaríamos tentados a trocar a inviolabilidade da nossa privacidade pela promessa de uma vida com menos doenças, menos crimes e menos intolerância. O problema da distopia retratada por Orwell em 1984 não é a permanente vigilância da população, mas a falta do contraponto hedonístico. Huxley havia percebido, antes de Orwell, que uma sociedade do controle precisa de uma dimensão de escape. Um 1984 com redes sociais, música popular e liberdade sexual seria perfeitamente tolerável, e mesmo desejável, por muitos.

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Hobbes talvez tivesse alguma razão. O homem comum está bastante disposto a abrir mão da sua privacidade, da sua liberdade de ir e vir, da sua liberdade de pensamento em benefício da segurança. Esse homem pensará: “não sou terrorista, homicida nem racista; minha vida é trabalho e lazer; não tenho nada a perder diante do controle governamental da minha existência”. Quem poderia reprová-lo?

É possível mesmo antever que os que se opuserem a esse controle institucional da vida serão, na mídia e nas redes sociais, considerados obscurantistas, teóricos da conspiração e até criminosos. Quando chegar o momento, cada homicídio consumado será atribuído à ignorância dos que se opõem à monitoração de tudo e de todos pelo Estado. Os críticos de um projeto assim serão tratados como esquisitões, como loucos, como terraplanistas, e enfim relegados à irrelevância por meio do processo de silenciamento social que Noelle-Newmann chamou de “espiral do silêncio”.

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Ao chegarmos no epítome do controle estatal do cidadão, em certo sentido a nossa existência será mais livre: uma sociedade sem crime e sem ódio evidentemente é uma sociedade em que a vida pode ser vivida mais plenamente.

Mas, como tudo no mundo humano, essa liberdade é dialética: quando ganhamos uma coisa, perdemos outra. O que teremos perdido quando isso tudo acontecer? O que teremos perdido quando a totalidade da nossa vida for institucionalizada?

Talvez percamos uma faculdade sutil e invisível, uma faculdade que, em última instância, não se pode medir senão indiretamente (como no experimento de Stanley Milgram): talvez percamos a nossa autonomia.

O homem que perde a responsabilidade sobre si mesmo, sobre a sua vida, sobre a vida dos outros, e alegremente cede essa responsabilidade a outrem, se transforma numa criança. Esse homem acreditará no que lhe for dito. Sob as palavras de ordem escolhidas com cuidado, fará o que lhe for ordenado, oprimirá quem lhe for indicado. E, na hora em que for escolhido para o sacrifício, marchará em direção à sua própria aniquilação com o coração emocionado, transbordando de amor patriótico.

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Amigos, a história do nosso tempo indutivamente nos revela uma tendência: o fortalecimento das instituições de controle da vida do homem. A feliz submissão a uma tirania tecno-científica de natureza benigna, que garantirá a saúde e a segurança de todos nós, parece mais ou menos inevitável. E quando isso acontecer, o homem finalmente terá, em vida, a sua pax aeterna.

*Prof. Dr. Gustavo Bertoche
Filósofo. Escritor. Musicista. Filósofo Clínico. Livre Pensador.
Teresópolis/RJ 

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