Sonhava ficar em casa de
pernas pro ar durante três meses enquanto é jovem e sadio? Pode comemorar. Seu
pedido foi atendido. Você está livre do trabalho, da escola, da universidade.
Agora tem tempo de sobra pra fazer o que quiser. Não está doente, tampouco
aposentado e se tiver sorte ou for precavido, seus rendimentos ainda estão
garantidos.
Só que não. Você está
doente, mas não sabe. Os sintomas estão saltando aos olhos e você não vê ou se
nega a enxergar. Pensa que está saudável e assintomático, mas está enganado.
Não estou falando do coronavirus, desta praga vamos nos salvar. A sua doença é
mais grave, assumiu uma forma crônica e a única maneira de se curar talvez seja
o confinamento obrigatório.
Hipócrates, o pai da
medicina, dois mil anos atrás prescrevia que antes de curar alguém é preciso
perguntar se a pessoa está disposta a desistir das coisas que a fizeram
adoecer. Faz de conta que seu filho adora sorvete, mas precisa parar de comer
porque está ficando obeso. Come escondido na escola, na casa dos avós, no clube
e cada dia engorda mais. Nega-se a parar de comer. Quer fazer ele enjoar de
sorvete e nunca mais colocar na boca uma colher sequer? Ofereça um picolé de
hora em hora. Pode alternar com uma casquinha ou um cone. Não pare de oferecer,
obrigue-o a comer. Depois de uma semana, não vai conseguir nem olhar para um
sorvete.
Voltemos a doença que
aflige a humanidade: desumanização e falta de sentido na vida. A tecnologia
trouxe benefícios enormes, a ciência desvendou mistérios inimagináveis, o homem
se agigantou, empoderou, deixou de prestar atenção no universo, no outro,
passou a olhar para si e se isolar cada vez mais com seu computador e
smartfone. Com estas duas
ferramentas controlava tudo. Só que, mais uma vez, não. O homem não
controla a natureza, muito menos o Universo.
Antigamente, para
castigar alguém, cortava-se o convívio, hoje em dia, corta-se a internet. O
grande mérito deste confinamento é justamente fazer o contrário, ou seja, nos
deixar presos com aquilo que nos viciou, adoeceu e não queremos abrir mão. E
vamos precisar ficar assim trancados até enjoarmos. Depois disso, estaremos
curados, mas vai ser preciso tempo, muito tempo.
Fomos condenados a ficar trancados com a
tecnologia até que ela nos cause náuseas, até que possamos compreender que
“like” não é afeto, “seguir de volta” não é amizade e rede social não é vida
real. Precisamos ficar isolados pra sentir que horas de conversas no celular
nunca vão conseguir substituir um abraço, um toque, um olhar.
Precisamos ficar
conectados à internet até começarmos a sentir falta de coisas simples, como
sentar no banco da praça, ir ao armazém da esquina ou conversar com o porteiro
do prédio. A internet deveria ser usada como um livro, não como um amigo. Num
mundo cada vez mais conectado, o isolamento social ainda é uma triste
realidade. Quando a dor do próximo não mais nos afeta, quem está precisando de
ajuda somos nós.
A prisão domiciliar
imposta no conforto do lar está nos oferecendo
a oportunidade única de ficar vinte e quatro horas por dia conectados e
ao mesmo tempo afastados compulsoriamente de amigos e amores. A falta de tempo é o que nos faz perder
tempo. Junto com o confinamento, ganhamos o tempo que precisávamos para
reavaliar o sentido de nossas vidas e nos tornar mais vivos. Melhores pais,
melhores filhos, melhores irmãos, melhores vizinhos, melhores patrões, melhores
qualquer relacionamento.
Não precisamos entender
porque tudo isto esta acontecendo,
precisamos encontrar a direção que vamos seguir, só que ainda não a encontramos, estamos correndo desorientados
por todos os lados. Calma, temos tempo, neste mundo desumanizado, quanto menos
pressa tivermos, quanto mais nos espiritualizarmos, mais fácil encontraremos
nossa direção e sentido nesta vida. Judeus precisaram ficar quarenta anos
perambulando no deserto até chegarem à terra prometida. O Dilúvio de Noé durou
quarenta dias e quarenta noites, mas a inundação perdurou por cento e cinquenta
longos dias. Precisamos aprender que nem todas as tempestades vêm para
destruir, algumas chegam pra limpar.
*Dr. Ildo Meyer
Médico. Escritor.
Palestrante. Filósofo Clínico.
Porto Alegre/RS
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