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Versões Extraordinárias*


Dentre os sentidos mais aguçados na interação do sujeito com seu ambiente destaca-se a extensão sobrenatural do olhar. Nele as figuras do inesperado se alternam numa dança incrível. Muitas vezes, imobiliza o corpo inteiro para maior nitidez aos fantásticos roteiros.

Na busca por descrever ecos da imensidão desconhecida, não consegue perceber a inexistência de vocabulário para compartilhar essas vivências. Assim, na visão dos outros, isso tudo pode significar desatino.   

No esboço dos inéditos discursos, ainda existe uma simbologia invisível a olho nu. Com medo de ser desmerecido socialmente, tenta referir coisas sem nenhuma novidade, para se integrar ao mundo normal. Ainda assim, os significados de maior intimidade, apreciam as tentativas de tradução.

O visar delirante transgride fronteiras na vastidão do seu entorno. Cria dialetos de versão própria e percorre regiões desconhecidas. Aventura-se por onde ninguém mais poderá chegar, sem seu auxílio. Ao vislumbrar o rascunho dos devaneios, é possível entender as tramas interditas no sujeito. Como uma língua nova a ser aprendida e compartilhada. 

Roland Barthes indaga reflexivamente: "Sou o ponto de referência de qualquer fotografia, e é nisso que ela me induz a me espantar, dirigindo-me a pergunta fundamental: por que será que vivo aqui e agora ?"

Um caótico devir avista-se nos inacreditáveis mundos, onde as vontades ainda sem representação sugerem outras verdades. A luz do dia tenta dar algum sentido às figuras do sonho, ofuscadas pelos excessos da realidade. Lugar sempre outro a revelar inesperadas dimensões do fenômeno humano. 

A pessoa refugiada na imensidão de seus subúrbios passa a testemunhar eventos camuflados de irrealidade. Vê acontecer, em mostras desatinadas, uma ilusão de ótica a re-significar contrários, como se fosse possível ir além da parede vazia.

Nesse sentido, as coisas também vão surgindo no multicolorido das imagens de aparente sem nexo. Extravagância refletida no olhar de quem vê. Os desatinos da mirada, muitas vezes intraduzível, contribuem para emancipar habilidades e alargar horizontes humanos, tidos, até então, como sobrenaturais. A desrazão resta exibir o avesso da normalidade.

Edgar Allan Poe em sua visão mágica: "Aquele que nunca desmaiou jamais será capaz de descobrir palácios estranhos (...); jamais contemplará a flutuar, no meio do espaço, as tristes visões que a maioria não pode distinguir; (...) jamais sentirá seu cérebro perturbado pelo sentido de alguma cadência musical que, até então, não lhe detivera a atenção"

As palavras vão aparecendo, para tentar descrever vislumbres de aspecto fantástico. Feitio do espanto no contraste descontinuado das falas. O gesto estapafúrdio realça as difusas arquiteturas da subjetividade. Aprecia denunciar a pluralidade dos ânimos ainda sem rosto. A desordem das crises desdobra-se numa fenomenologia das buscas. Desajuste descrito nos eventos da dessemelhança.

Ao fechar os olhos é possível enxergar vestígios de alma nova do devir da desrazão. Aspectos de uma invisibilidade a se desdobrar num ritual profano de nuanças, sombras e fragmentos da realidade distorcida. Contemplar sem hermenêutica, a sugestão imprevisível desses segredos da interdição. Os incontáveis depoimentos registram um presente, até então embaralhado, e a ofuscar a visão desacostumada com seus deslocamentos. 

Quem será o irreconhecível em frente ao espelho ?

Antonin Artaud refere: "O espírito acredita no que vê e faz aquilo em que acredita: esse é o segredo do fascínio. As incógnitas apreciam a expressividade estapafúrdia contida nos delírios. Viés provável as outras verdades que não o saber-poder das interdições. Cópias da inexatidão na descontinuidade das dialéticas. Matéria-prima refugiada no ir e vir das metamorfoses"

O caos precursor pode ser o ponto de partida às re-significações da pessoa. Assim, a estrutura do olhar pode desvendar ou ocultar o milagre da singularidade, nem sempre expresso na forma da lógica formal. Entremeios de enredo para si mesmo, o sujeito peregrino descortina-se para além da alienação diagnóstica. 

Ao observar os sonhos e delírios incessantes, é possível antever uma epistemologia dos excessos. Na diversidade dos desequilíbrios pessoais, outras verdades escapam aos critérios conhecidos. 

*Hélio Strassburger in "Filosofia Clínica - Diálogos com a Lógica dos Excessos". Ed. E-Papers/RJ. 2009. 

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