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Um devir para si mesmo*


                                         
A filosofia também se destaca pela estranheza na relação do sujeito com o cotidiano de suas representações. Na filosofia clínica acontece algo semelhante, por exemplo, no processo inicial da terapia, e bem depois, em seus desdobramentos, onde o filósofo não possui uma metodologia apriorística, o que se conhece, se conhece pela primeira vez. Possui, dentre outros fundamentos, uma hermenêutica filosófica, que lhe possibilita um acolhimento compreensivo do outro diante de si mesmo. 

Esse instante preliminar pode ser decisivo para a continuidade da clínica, pois cabe ao filósofo, além de cuidar do partilhante, cuidar de sua própria estrutura de pensamento nessa interseção. Noutras palavras, observar e sentir sua estrutura observando e sentindo o fenômeno partilhante diante de si, estabelecendo uma clarividência sobre os desdobramentos da terapia.  

Em filosofia clínica a natureza dos encontros é de um saber que não sabe. Para cuidar dessa fonte de inspiração – o outro - há de se ter uma indeterminação convidativa ao explorar compartilhado. Um dos momentos significativos da atividade terapêutica é o momento em que a pessoa se reconhece num endereço existencial que a traduza, represente – incluindo aí suas incompletudes, lacunas, provisoriedades – numa condição em vias de ser aquilo que ainda não é.

Existem inúmeras circunstâncias onde o esboço já é a obra. Nesse processo terapêutico existencial, compete ao filósofo clínico uma intimidade estrangeira, em busca de compreender os indícios, rastros, nuances sobre as considerações do partilhante acerca de sua vida. Uma obra de arte inacabada, exilada no silêncio das palavras não pronunciadas.

A uma percepção de ótica universal, os inéditos ensaios de cada um permanecem desconhecidos. Eventos assim se apresentam na forma difusa de uma inquietude. É bom lembrar que, a cada visita ao mundo de alguém, você o modifica com sua presença, interfere no ambiente, bem como esse lugar modifica você.

Trata-se de um transbordamento por onde a pessoa conjuga horizontes, numa língua estranha ao lugar onde se pronuncia. Sendo algo desconsiderado num contexto, pode ser a novidade que faltava noutra perspectiva. Nesse sentido, o vocabulário utilizado por uma pessoa, ainda quando em um mesmo idioma, costuma inaugurar uma língua diferente. Um convite para conhecer as múltiplas regiões de si mesmo.

É da essência do viver ser incompletude, através dela a vida se reapresenta, compõe seus roteiros pelo instante fugaz. O pressuposto da historicidade aprecia ser cúmplice desses rastros esparramados entre o que se diz e o que não se mostra. Constitui ingredientes a uma porção desmedida de toda medida. A fenomenologia presente na indeterminação dos dias reconhece e acolhe os subúrbios de si mesmo, apresenta uma intencionalidade ainda sem nome.  

*Hélio Strassburger
Filósofo Clínico não filiado a anfic

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