Pular para o conteúdo principal

Dialéticas do lugar*


                                               
“Para sair da prisão, todos os meios são bons. Em caso de necessidade, o absurdo, por si só, liberta.”
                                                      Gaston Bachelard

A vida aprecia insinuar-se em contextos de descobrimento. Princípio sem fim pode estruturar-se através de outras subjetividades. Pré-história, na especulação de saber impreciso, evidencia suas memórias na articulação constituinte das representações.

Alguns refúgios favorecem expressividades em proximidade com desconhecidos aspectos de si mesmas. Posto que não seja um canto qualquer, mas recanto, os esboços escolhem circunstâncias de todavia-contudo para manifestar-se em rotas inesperadas. O pensar contém a essência do existir em suas recordações. Oferendas em rascunhos de novidade percorrem-se nas formas inacabadas.

Félix Guattari elabora uma competente reflexão crítica:

“(...) ao pensar a análise não mais como uma interpretação transferencial de sintomas em função de um conteúdo latente preexistente, mas invenção de novos focos catalíticos suscetíveis de fazer bifurcar a existência. Uma singularidade, uma ruptura de sentido, um corte, uma fragmentação, a separação de um conteúdo semiótico – por exemplo, à moda dadaísta ou surrealista – podem originar focos mutantes de subjetivação”.

Pessoas costumam ser reflexo de suas origens. Buscas por resignificar cotidianos em olhares de estranhamento. As evidências de provisoriedade, muitas vezes, se oculta em contornos de obra de arte. Lugar sempre outro, ao vislumbrar aquilo que já passou. Surpresa em faces de espelho percorre-se na descrição das rotas por infinitos (re)começos. Esparramam ao redor do caminho indícios de significado próprio: verdades subjetivas, valores, sonhos, anunciam um jeito novo em pretextos de vir-a-ser. Desnudam-se em escolhas de narrativa, numa aptidão para influenciar a matéria-prima em reinvenção nas sensações de lugar algum em todo lugar. Nuanças do extraordinário refazem abrigos a natureza das circunstâncias.

A insegurança e o medo podem descortinar temores de raiz mais funda, alimentam-se com o cristalizar dos sonhos em abstrações cada vez mais distantes. Muitos são aqueles vivendo em impróprios contextos, subsistindo como locatários num espaço que não lhe pertence. Assim, na proeza de um existir sem rosto, tentam agradar outros prisioneiros, acomodam-se num estado de não-ser. Endereçam suas orações a deuses inatingíveis. Enquanto isto, um sagrado se esboça, em sensações de não fazer parte dessa realidade, cada vez mais distante de si mesma.

Mircea Eliade, referindo o simbolismo mágico-religioso, contribui para se pensar sobre as mitologias do lugar:

“Nas mitologias nórdicas, Odhinn é, sem dúvida, o patrão, o chefe dos guerreiros, neste mundo e no outro. (...) Ele possui uma série de dons mágicos, o dom da ubiquidade ou pelo menos de transporte imediato, a arte do disfarce e o dom da metamorfose ilimitada, e, sobretudo, o dom de cegar, de ensurdecer, de paralisar seus adversários e de tirar toda a eficácia de sua armas”

Grandes aldeias possuem suas escolas, prisões, igrejas, farmácias, armazéns, concedendo ‘paz de cemitério’ para as coisas da região. Destacam valores, ensinam verdades e tratam de domesticar seus filhos de acordo com a estrutura local. Depósito de almas sem vontade conformam-se no vazio de intencionalidades distanciadas de seu melhor. Ainda assim, múltiplos segredos constituem a matéria-prima do lugar.

Ao encontrar-se com o avesso das impróprias circunstâncias, algumas pessoas ultrapassam os limites de seus quintais. Passam a perceber a nada estranha impressão de ter nascido fora de época ou numa família de estranhos. Quando realizam uma introspecção reflexiva com esses retiros, descobrem estados de possível recomeço. Papéis existenciais, até então interditos, podem aflorar em interseção de recém-descoberta.

Merleau-Ponty diz assim:

“(...) a este saber que eu sou, o mundo não pode apresentar-se a não ser oferecendo-lhe um sentido, a não ser sob a forma de pensamento do mundo. O segredo do mundo que procuramos é preciso, necessariamente, que esteja contido em meu contato com ele. De tudo o que vivo enquanto o vivo, tenho diante de mim o sentido, sem o que não o viveria e não posso procurar nenhuma luz concernente ao mundo a não ser interrogando, explicando minha frequentação do mundo, compreendendo-a de dentro”

Uma poesia inaugura-se na indecisão fronteiriça de um talvez. Excepcional impressão em raras brumas, por onde herméticos prefácios anunciam esses percursos por improváveis amanhãs. Atualizando vínculos de imperfeições entre sonho e realidade, se elabora em falas de oráculo, numa inspiração articulada com a vida em preparação nas palavras.

Em vestígios pelas inexploradas rotas, esse território constitui-se de subterrâneas raízes. Uma metafísica do lugar se encontra no mais exótico dos sonhos: a vida real. Ao ser imprevisível mostram signos de outras naturezas. Uma inspiração nômade constitui estranhos dialetos, esses rumores de terra distante chegam aos pedaços.  

Sem pressa de chegar, uma estrutura em movimento descortina-se em entremeios de viver andarilho. Apreciando as belezas da paisagem, se atualiza com a alternância de sons, sabores e aromas, pontos de vista. As vastas e inexploradas regiões convidam para interseções em fascínios de estrada. Talvez por isso as asas de Mercúrio estejam nos pés!

Existem abrigos na beira do caminho. Quiosques, bares e pousadas desvirtuam olhares na direção de ficar e partir. Ruídos de chuva no silêncio da noite agendam seus convites, oferecem as chaves de uma casa em perspectivas de mudança. No entanto, a correnteza desse rio – passando – nos recorda que somos parte de todo lugar.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Poéticas da singularidade”. Ed. E-papers/RJ. 2007.

Comentários

Visitas